terça-feira, 25 de outubro de 2022

À espera da mágica

Na rádio um poema sinfônico, O Aprendiz de Feiticeiro, de Paul Dukas, composição tão bem sucedida que é, de longe, a mais conhecida dele (um dos não raros casos em que uma única obra marca o autor, para sua alegria ou tristeza). A popularidade desta sinfonia deve muito ao filme Fantasia, de Walt Disney, que num de seus episódios descreve o tema em saboroso desenho animado, tendo como fundo a música de Dukas. Ao que se sabe, a obra ofuscou, até mesmo, a poesia homônima de Goethe que originou a trama, 100 anos antes da música… É uma parábola quase atemporal que pode ser rastreada na antiguidade.

Do que trata o poema de Goethe, musicado por Dukas? Quem assistiu à Fantasia lembra bem da historieta: há um feiticeiro, anoso e experiente, que tem a seu serviço um jovenzinho, o Mickey, a cuidar das coisas domésticas, como varrer, lavar o piso e outras tarefas. De tanto ver o imenso poder do mago em ação, alguma coisa Mickey aprende. Quando o mago adormece, o aprendiz, cansado de carregar baldes, veste o chapéu do feiticeiro e mete-se a encantar a vassoura, que cria braços e passa a fazer serviço. Mickey acaba por adormecer em sua poltrona e tem sonhos de poder. É acordado por uma tremenda inundação provocada pela vassoura, que continua incansavelmente a trazer baldes de água… E é esse o busilis da questão: o aprendiz não sabe como parar o feitiço! Apenas a interveção do poderoso feiticeiro recoloca as coisas de volta aos trilhos, enquanto dá um pito e uma lambada no ousado aprendiz.

A internet passa por incômodos e tensões e, sem dúvida, é justo que se busquem formas de amenizar o que nos ameaça. Se pudéssemos, de uma forma quase mágica, livrar a rede de tudo o que nos ameaça, incomoda ou dá trabalho, estaríamos muito melhor. E é isso que se discute hoje em todos os lugares do mundo e particularmente na Europa, onde o DMA (M de mercado) e o DSA (S de serviços) então entrando em ação. Seus objetivos, buscados por meios complementares, são: estabelecer um cenário que incentive a inovação, o crescimento e a competitividade no mercado local e global e, também, criar um espaço digital seguro, onde são protegidos os direitos fundamentais dos usuários dos serviços na rede. Ótimos objetivos, sem dúvida. Como serão atingidos? No caso especialmente do DSA, talvez se busquem “vassouras encantadas” que ajudem na limpeza, e essas vassouras seriam os operadores de plataformas, que teriam a seu encargo policiar o que por eles transita. Pode ser que se esconda um perigo: estaríamos dando ainda mais poder aos que já detem um imenso mercado? Ao transformar o monitoramento de conversas individuais - que antes era vedado ou, ao menos, desestimulado – em obrigação, não se iria exatamente na direção do que as plataformas querem? Difícil prever, mas eventuais novos candidatos a feiticeiros deveriam precaver-se de que a mágica pudesse ser desmontada, caso ela se transforme em inesperado dano… Afinal, de há muito se sabe que “o caminho do inferno está pavimentado de boas intenções”...

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O aprendiz de feiticeiro

https://filarmonica.art.br/educacional/obras-e-compositores/obra/dukas-aprendiz-de-feiticeiro/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Paul_Dukas

https://pt.wikipedia.org/wiki/Fantasia_(Disney)

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DMA e DSA

https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/digital-services-act-package

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terça-feira, 11 de outubro de 2022

O Eterno Retorno

O conto “O Imortal”, de Jorge Luis Borges, começa com uma intrigante frase de Francis Bacon de seu ensaio LVIII “Das vicissitudes das coisas”: “Salomão disse ‘não há nada de novo sobre a Terra’. Platão teve uma inspiração: ‘todo o conhecimento não é senão lembrança’; logo o que Salomão afirmou é que ‘toda novidade não é senão esquecimento’”.

Esse antigo ciclo de esquecimento/abandono e redescoberta foi muito acelerado pela Internet, e fica patente em nossos dias o quanto isso tornou-se crítico. Em assuntos comezinhos, do dia-a-dia, temas defendidos e considerados consolidados há poucos anos acabam por ser revisitados e, não raramente, como se fossem “terra incognita”. Particularmente na computação esse fenômeno é bastante frequente. Veja-se que a inteligência artificial, por exemplo – e ela em sí não é algo particularmente novo: suas raízes estão nos anos 50 – é um tema em voga hoje, tendo voltado com intensa visibilidade e força, e se pesquisas complexas na área são desenvolvidas em instituições sofisticadas, hoje há disponíveis ao entusiasta diletante várias ferramentas abertas na internet. Com elas pode-se ter uma antevisão do que vem por aí e, assim, entusiasmar-se, ou se preocupar…

Há diversos aplicativos que permitem, como resposta a uma simples frase digitada, a geração de imagens complexas que buscam ilustrar o significado pedido. Certamente é uma porta aberta a que se montem figuras muito verossímeis… e falsas. Pode ser um ótimo auxiliar a artistas, como também pode aumentar o oceano de desinformações em que estamos mergulhados – ah, uma dessas imagens gerada por AI já ganhou um prêmio em exposição artística, e já se disparou a polêmica correspondente, incluindo-se aí o debate sobre “propriedade intelectual” da obra… Na área de gerador de texto natural também há opções disponíveis, que podem produzir um texto muito realista e, até, imbuir nele um “tom” que pode ser escolhido pelo usuário: sério, jocoso, profissional ou provocativo.

No caso das imagens sintéticas parece estarmos vendo algo novo, mas quanto a textos artificiais há 20 anos já existia, por exemplo, um gerador automático de “artigos científicos” – o SCIgen, desenvolvido no MIT e com código aberto disponível no github. O SCIger produz textos tão críveis que alguns deles foram aceitos para apresentação em eventos e para publicação em revistas. Para temas mais prosaicos e disponível em português há o “gerador de lero-lero”, sobre assuntos variados.

A evolução da tecnologia parece ser em espiral, onde um ponto já examinado no passado volta a ser visitado, mas com potência multiplicada pelos avanços da técnica… Aliás, pareceu-me que já usei a frase aqui citada, do Bacon, em outro artigo… Bem, é mais uma demonstração de que não há novidade, apenas esquecimento. Perdão leitores!

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El Inmortal, Jorge Luis Borges:
https://www.ingenieria.unam.mx/dcsyhfi/material_didactico/Literatura_Hispanoamericana_Contemporanea/Autores_B/BORGES/inmortal.pdf

https://www.bartleby.com/3/1/58.html
“Salomon saith, There is no new thing upon the earth. So that as Plato had an imagination, that all knowledge was but remembrance; so Salomon giveth his sentence, that all novelty is but oblivion.”
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Geradores automáticos de texto:
https://app.copy.ai/

"O Fabuloso Gerador de Lero-Lero!"
https://lerolero.bgnweb.com.br/

o SCIgen, do MIT, e exemplos:
https://pdos.csail.mit.edu/archive/scigen/
https://pdos.csail.mit.edu/archive/scigen/#examples

O caso do artigo de Alan Sokal
https://physics.nyu.edu/faculty/sokal/

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https://fasbam.edu.br/wp-content/uploads/2020/08/Escada-dos-Museus-Vaticanos.jpg