terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Palavras, palavras, palavras...

A língua é fundamental para que possamos elaborar pensamentos. Mesmo sem ir a Orwell, sabemos que quem domina a língua das pessoas, domina o seu pensamento. Heidegger já dizia que “nós achamos que dominamos a linguagem, mas é ela que nos domina”, e Wittgenstein alerta-nos que “os limites de nosso pensamento são os limites de nossa linguagem”.

Não sei avaliar o impacto que as redes sociais – não a Internet em si – causam e causarão em nossa linguagem, mas vendo a facilidade e a leviandade com que nos manifestamos nelas, lembro-me da resposta de Hamlet a Polônio quando este, ao vê-lo perambulando pelo jardim com um livro na mão, pergunta: “o que lês, meu senhor?”, e Hamlet retruca “palavras, palavras, palavras”… Incisivamente adiciona que as tais palavras são “maledicências: afirmam que os velhos têm barba cinza e pele enrugada…”.

Há múltiplas facetas por onde poderíamos examinar o que ocorre hoje com nossa língua, e que parcela de responsabilidade se pode atribuir à exuberância de imediata expressão, de que todos passamos a dispor com a Internet. Há um misto de deslumbramento com vocábulos estrangeiros, alguns com perfeita tradução para o português, e um esnobismo que nos leva a usá-los. Não se descarte, também, o comodismo que nos faz preferir o que está mais à mão – comodismo que é também importante fator para a centralização que ocorre em torno de plataformas, e representa estímulo ao uso de algoritmos por parte delas.

Tive a sorte de ouvir de ótimos professores de português no colégio, que “a língua é dinâmica” e que, portanto, pode e deve ser enriquecida com conceitos que não tínhamos. Certamente não se quer traduzir “bit” e “byte”, conceitos novos, mas por que cargas d’água “delivery” teria mais riqueza semântica que “entrega a domicílio”? Ou “coffee break” exprimiria melhor a idéia de um intervalo “para café”? Aceitemos, como exemplo, que “live” ou “site” carreguem um conceito mais amplo que “ao vivo” ou “sítio”, visto que se referem a situações novas. Muito bem! Então que tal aportuguesarmos para “laive” e “saite” (aliás, Millor escrevia ‘saite”!) como já fizéramos com “abajur” e “futebol”? Imaginar que um “i” em português soe como “ai” parece-me totalmente descabido.

Dói ver a forma como se tem lidado com a “última flor do Lácio”, de tanta tradição e que nos deu obras imortais (e nem pretendo abrir discussão sobre outra tendência muito discutível, a de “novipalavras” numa pretensa “linguagem neutra”). Sinceramente torço para que o português, que conhecemos e que respeitamos, preserve sua forma e riqueza. Retomando Hamlet, “o resto é silêncio”...

===

https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/doi-ver-como-o-nosso-idioma-e-tratado-nas-redes-sociais/

===

Shakespeare - Hamlet

http://shakespeare.mit.edu/hamlet/hamlet.2.2.html



Lord Polonius-  <...> What do you read, my lord?
Hamlet- Words, words, words. <...>
Lord Polonius- I mean, the matter that you read, my lord.
Hamlet - Slanders, sir: for the satirical rogue says here that old men have grey beards, that their faces are wrinkled...

https://everydaypower.com/hamlet-quotes/


===
Orwell

https://www.sparknotes.com/lit/1984/quotes/theme/mind-control/

===

Heidegger:

https://www.goodreads.com/quotes/176949-man-acts-as-though-he-were-the-shaper-and-master

===

Wittgenstein

http://www.signosemio.com/wittgenstein/language-games.asp



terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Ação e inação

Coloca-se mundialmente o debate sobre como tratar danos causados ao estamento social pelas ferramentas de comunicação cada vez mais presentes e influentes. O Brasil, podemos dizer, está acima da média mundial em termos de organização para enfrentar isso de forma racional e participativa. Tanto em governança da Internet, como em legislação existente, há etapas importantes. A começar pela criação em 1995 do CGI, Comitê Gestor da Internet no Brasil, o seu decálogo emitido em 2009, “Princípios para a Governança e Uso da Internet no Brasil”, e desembocando no Marco Civil, assinado em 2014 na abertura da NetMundial, que gerou documentos de consenso.


A discussão sobre os efeitos das chamadas “plataformas” no tecido social muitas vezes tende, ao buscar uma revisão, a extrapolar ou enviesar conceitos presentes no decálogo e no Marco Civil. Emblemática e recorrente é menção ao artigo 19 do Marco Civil: “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”, que funda-se no item 7 da decálogo: “O combate a ilícitos na rede deve atingir os responsáveis finais e não os meios de acesso e transporte, sempre preservando os princípios maiores de defesa da liberdade, da privacidade e do respeito aos direitos humanos”.

Antes de revisitar esses princípios, e buscando preservar direitos e liberdade, uma definição concertada faz-se necessária, afinal, “a fronteira da linguagem se confunde com a fronteira do pensamento possível”. De que definições carecemos aqui? Inicialmente estabelecer claramente a de “intermediário”. Ninguém pensaria em reponsabilizar o carteiro por uma carta ofensiva ou falsa, ou a companhia telefônica por uma conversa maleducada. O intermediário clássico é imune ao conteúdo que transporta: “não mate o mensageiro”. Aliás a legislação veda que esse tipo de mensageiro bisbilhote o que entrega, tanto correio como telefonia.

Onde “a porca torce o rabo”, entretanto, é ao examinamos outros atores do ambiente. Além do fato de deterem um poder de mercado impressionante, muitos agem por iniciativa própria. O ponto que merece mais exame são algoritmos que decidem nos enviar conteúdos que não solicitamos e que, na busca do mais efetivo retorno, recolhem dados e comportamentos, classificando-nos como candidatos a receber determinados conteúdos. Certamente isso vai muito além da ação de um intermediário clássico, que estaria blindado quanto ao conteúdo que tranporta: agora há uma “decisão” de expandir o alcance de um conteúdo, não originada do remetente original mas no que o algoritmo achou mais conveniente.

Antes de pedirmos que alguém, de alguma forma, filtre o que recebemos, parece mais sensato garantir que recebemos aquilo que pretendíamos receber, de remetentes com os quais nos correspondemos e dos grupos de discussão de que participamos. É claro que cada um seguirá responsável pelo que envia.

===
https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/ao-usar-algoritmos-plataformas-nao-estao-mais-isentas-dos-conteudos-que-abrigam/

Marco Civil:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2014/lei-12965-23-abril-2014-778630-publicacaooriginal-143980-pl.html

Decálogo do CGI:
https://principios.cgi.br/sobre

===
Eugênio Bucci: "Existe democracia sem verdade factual?)
https://repositorio.usp.br/item/002983854

===
Lema do Correio Norte-Americano, derivado de uma frase de Heródoto
https://en.wikipedia.org/wiki/United_States_Postal_Service_creed







terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Tudo pode!

 O ano termina e ressurgem nossas resoluções gregorianas ocidentais de sempre: melhoraremos em tudo, a racionalidade sobrenadará etc. Tanto nas retrospectivas quanto nas previsões, o que há mais são incertezas. Sim, como bem alguém afirmara nos anos 90, “no Brasil até mesmo o passado é incerto…”. E há, inclusive, incerteza quanto ao autor da boutade acima, que usualmente se atribui a Pedro Malan…

Voltando às reminiscências características da época, lembrei-me de Aleksandar Mandić que, além de ter sempre um martelo sobre sua mesa lá no IG, grudava na parede uma série de frases as mais variadas. Escreveu, inclusive, um livreto – Mandicas – onde essas frases estavam reunidas. Uma das que ele mais gostava – e sistematicamente usava em entrevistas - era “tudo pode”.

O “tudo pode” remeteu-me a um cientísta-filósofo bastante polêmico, Paul Feyerabend. Para ele, o único princípio que não inibe o progresso seria: “tudo vale a pena”. Feyerabend aborda de forma pouco convencional o conceito de “ciência”, e a coloca como uma “ideologia” que, como as demais, deveria estar sob o comando das ferramentas da democracia. .

Numa palestra que deu em Viena em 1975, e que está disponível em texto com o provocador título “Como defender a sociedade contra a ciência”, ele expõe entre outras a tese de que “há muitas formas de desenvolver ciência, que não devem ser travadas em algum método único”. E que, “da mesma forma que se apoia a separação de Estado e Igreja, dever-se-ia buscar a separação entre Estado e Ciência”. A chocante afirmação usa como argumento que há coisas mais importantes, social e humanamente, do que a unção de uma “verdade científica”.

Essa discussão, sobre modelos e paradigmas, também é travada por outros importantes nomes na área, como Karl Popper e Thomas Kuhn. Num exemplo simples, de um não especialista, a mecânica de Newton continua servindo perfeitamente ao dia-a-dia , mesmo que tenha sido ultrapassada na Física com Einstein. Aliás não são poucos nem desprezíveis os conhecimentos que a ciência estabelecida recebe das tradições de ambientes muito menos sofisticados. Quantas noções úteis e simples da agricultura, por exemplo, não podem ser recolhidas de uma conversa com os que lidam historicamente com a terra? Lembro-me que, numa viagem de ônibus de algumas horas, sentou-se ao meu lado um senhor de etnia indígena, e desfilou-me uma coleção de conhecimentos únicos sobre ervas e tratamentos, que ele tinha obtido de sua avó, e que preservava. Ou seja, são importantes os resultados palpáveis, venham eles da ciência estabelecida, ou também dos ricos conhecimentos acumulados, mesmo que sem rigor científico e de experimentação. Algum dia eles serão confirmados ou desmentidos, como aliás é apanágio da verdadeira ciência: ser “falsificável”, na definição de Popper. Tudo o que leva o nome de “ciência” deve poder ser submetido a teste de negação, e permanecerá válido enquanto sobreviver aos testes.

A boa ciência é humilde e sabe que suas “verdades” podem ser substituídas sempre que falharem num teste de “falsificação”. Afinal, como disse Shakespeare via Hamlet, “há mais mistérios entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha nossa vã filosofia”. Um excelente 2023 a todos!

===
Citações:

https://citacoes.in/autores/paul-karl-feyerabend/

Tudo Pode:

https://www.scielo.br/j/prc/a/hzJfcDktBfD6Zbwzs7kqJJd/?lang=pt Feyerabend e a máxima do "Tudo Vale": A necessidade de se adotar múltiplas possibilidades de metodologia na construção de teorias científicas

https://netnature.wordpress.com/2018/03/11/metodo-cientifico-popper-kuhn-feyerabend-e-lakatos/

"Como defender a sociedade contra a ciência"

https://silo.tips/download/como-defender-a-sociedade-contra-a-ciencia