terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Tudo pode!

 O ano termina e ressurgem nossas resoluções gregorianas ocidentais de sempre: melhoraremos em tudo, a racionalidade sobrenadará etc. Tanto nas retrospectivas quanto nas previsões, o que há mais são incertezas. Sim, como bem alguém afirmara nos anos 90, “no Brasil até mesmo o passado é incerto…”. E há, inclusive, incerteza quanto ao autor da boutade acima, que usualmente se atribui a Pedro Malan…

Voltando às reminiscências características da época, lembrei-me de Aleksandar Mandić que, além de ter sempre um martelo sobre sua mesa lá no IG, grudava na parede uma série de frases as mais variadas. Escreveu, inclusive, um livreto – Mandicas – onde essas frases estavam reunidas. Uma das que ele mais gostava – e sistematicamente usava em entrevistas - era “tudo pode”.

O “tudo pode” remeteu-me a um cientísta-filósofo bastante polêmico, Paul Feyerabend. Para ele, o único princípio que não inibe o progresso seria: “tudo vale a pena”. Feyerabend aborda de forma pouco convencional o conceito de “ciência”, e a coloca como uma “ideologia” que, como as demais, deveria estar sob o comando das ferramentas da democracia. .

Numa palestra que deu em Viena em 1975, e que está disponível em texto com o provocador título “Como defender a sociedade contra a ciência”, ele expõe entre outras a tese de que “há muitas formas de desenvolver ciência, que não devem ser travadas em algum método único”. E que, “da mesma forma que se apoia a separação de Estado e Igreja, dever-se-ia buscar a separação entre Estado e Ciência”. A chocante afirmação usa como argumento que há coisas mais importantes, social e humanamente, do que a unção de uma “verdade científica”.

Essa discussão, sobre modelos e paradigmas, também é travada por outros importantes nomes na área, como Karl Popper e Thomas Kuhn. Num exemplo simples, de um não especialista, a mecânica de Newton continua servindo perfeitamente ao dia-a-dia , mesmo que tenha sido ultrapassada na Física com Einstein. Aliás não são poucos nem desprezíveis os conhecimentos que a ciência estabelecida recebe das tradições de ambientes muito menos sofisticados. Quantas noções úteis e simples da agricultura, por exemplo, não podem ser recolhidas de uma conversa com os que lidam historicamente com a terra? Lembro-me que, numa viagem de ônibus de algumas horas, sentou-se ao meu lado um senhor de etnia indígena, e desfilou-me uma coleção de conhecimentos únicos sobre ervas e tratamentos, que ele tinha obtido de sua avó, e que preservava. Ou seja, são importantes os resultados palpáveis, venham eles da ciência estabelecida, ou também dos ricos conhecimentos acumulados, mesmo que sem rigor científico e de experimentação. Algum dia eles serão confirmados ou desmentidos, como aliás é apanágio da verdadeira ciência: ser “falsificável”, na definição de Popper. Tudo o que leva o nome de “ciência” deve poder ser submetido a teste de negação, e permanecerá válido enquanto sobreviver aos testes.

A boa ciência é humilde e sabe que suas “verdades” podem ser substituídas sempre que falharem num teste de “falsificação”. Afinal, como disse Shakespeare via Hamlet, “há mais mistérios entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha nossa vã filosofia”. Um excelente 2023 a todos!

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Citações:

https://citacoes.in/autores/paul-karl-feyerabend/

Tudo Pode:

https://www.scielo.br/j/prc/a/hzJfcDktBfD6Zbwzs7kqJJd/?lang=pt Feyerabend e a máxima do "Tudo Vale": A necessidade de se adotar múltiplas possibilidades de metodologia na construção de teorias científicas

https://netnature.wordpress.com/2018/03/11/metodo-cientifico-popper-kuhn-feyerabend-e-lakatos/

"Como defender a sociedade contra a ciência"

https://silo.tips/download/como-defender-a-sociedade-contra-a-ciencia




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