terça-feira, 23 de maio de 2023

Livre Pensar

Importamos debates de todo o mundo, como se já não tivéssemos temas em profusão por aqui mesmo. Assim é que soma-se às já complexas discussões sobre a extensão e a forma adequadas para uma legislação sobre plataformas e redes sociais, o tema sobre a remuneração cruzada de setores econômicos, normalmente identificado com o rótulo de “fair share”.

Estando eu muitíssimo longe de entender os complexos meandros da economia, meu primeiro espanto é com o que me parece ser uma “inovação”. Não conheço exemplos em que integrantes de uma área de atividade repassem recursos, por lei, diretamente a outra área de atividade. A mim não convence o argumento de que o crecimento vigoroso de um determinado setor exige esforços não previstos ou provisionados em outro setor e, portanto, seria necessário um financiamento cruzado… Afinal cada ramo de atividade econômica, inclusive, dispende esforços para em se destacar da concorrência, e assim ganhar mais usuários e porte. Se não fosse assim, não haveria mais sentido em se manter naquela área, e mais prudente seria buscar outra atividade. Obviamente cabe ao governo cobrar adequadamente os impostos correspondentes aos resultados das empresas de cada área e, examinando o cenário nacional, destiná-los a estímulo de setores e atividades que demandem suporte ou expansão do ponto de vista político. A proposta de financiamento cruzado entre áreas de atividade, a meu ver, faz tão pouco sentido como se os fabricantes de eletrodomésticos passassem parte de sua receita aos fabricantes de materiais plásticos, sob o argumento de que “mais plástico foi necessário em função de seu uso na fabricação dos eletro-domésticos”. Afinal coisas como impostos e a própria conta de luz, existem para buscar essa equilíbrio.

Outro tema candente, o de como tratar “intermediários” na rede, teve um aporte importante com a decisão da corte norte-americana em manter o espírito da seção 230 do “decency act” de 1996. Claro que muita coisa mudou desde 1996, especialmente com a enorme expansão do chamado “ecossistema digital”, porém essas mudanças devem se refletir em legislação específica e bem definida. Não há como abarcar as mudanças que a rede e a informática trouxeram ao mundo de uma maneira generalista. Cada categoria, cada conjunto de ações de um mesmo tipo, deve ser foco de debate próprio, com suas especificidades e peculiaridade eventualmente tratadase m legislação. A nova realidade do mundo em rede deu poder de manifestação e ação a todos, o que reforça que cada um deve ser responsável pelos seus atos. E os que forem apenas canais agnósticos no processo - e pode haver esse papel - deveriam continuar não-responsáveis. Claro, desde que atuem apenas como canais, e se confinem no papel de intermediários canônicos. Conforme um amigo resumiu numa conversa, o drama é: o que costumávamos chamar de “senso comum” tornou-se raridade – é tudo menos “comum”... De uma poesia do Millôr Fernandes: ... / pois se penso demais / acabo despensando tudo que pensava antes, / e se não penso / fico pensando nisso o tempo todo. 


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Entrevista de Millor com a poesia da qual um trecho foi citado:
http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/MillorFernandes.htm

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terça-feira, 9 de maio de 2023

O arquivo da rede

Praticamente todo conhecimento humano hoje tem alguma cópia digital na Internet. Informação está disponível a todos que tem acesso à rede, em escala nunca imaginada. Certamente as consequências disso, desde as obviamente positivas às que podem moldar o comportamento humano de maneira não desejável, ainda precisam ser avaliadas, mas isso em nada diminui o imenso valor que essa disponibilidade e acessibilidade traz a todos nós. No início da popularização da rede, houve um movimento de se depositarem as informações conhecidas na Internet, seja de forma estruturada – lembro do entusiasmo que tivemos, lá por volta de 1995, com a notícia de que a biblioteca do Vaticano estaria disponível na rede – seja pelo aporte das incontáveis iniciativas individuais, especialmente após o surgimento da web. Quando ao acesso, ainda em 1996 surgiria o Altavista, um dos primeiros buscadores poderosos que facilitariam imensamente o trabalho de “garimpagem”.


A preocupação em preservar o que se estava criando tem um marco em 2002, com a popularização de ferramentas como Wayback Machine, que visavam à manutenção de um arquivo histórico dos sítios encontrados. Há uma palestra que Vint Cerf deu em 2005, no Egito, onde faz um paralelo entre a importância que a biblioteca de Alexandria representou para a cultura mundial e como essa função estava migrando para a forma digital. Um dos alertas que Vint sempre faz é que o meio digital necessita de dispositivos e recursos que, se não preservados, podem tormar o conteúdo digital muito difícil de ser preservado. Certamente quem gravou seus dados importantes em disquete magnético sabe dos riscos, não apenas da preservação do meio material, como de perder formas de acesso e leitura. Em comparação, os velhos manuscritos em pergaminho https://www.thearchaeologist.org/blog/who-destroyed-the-library-of-alexandriaduram milhares de anos graças à qualidade do material e, por usarem línguagem que se consegue decodificar, seu conteúdo permanece. A preservação de dados digitais depende de fatores que muitas vezes são descurados, dada a aparente facilidade momentânea em gerar cópias a custo muito baixo. Com certeza daqui a mil anos, pergaminhos antigos, se bem conservados, continuarão sendo legíveis. Quanto aos nossos arquivos pessoais digitais, há dúvidas importantes.

A lembrança da biblioteca de Alexandria e de sua última destruição lá pelo ano de 650, traz ao debate outro ponto bastante atual: deve-se preservar toda a informação que há num dado momento, ou se deve proceder à “destruição” do que julguemos “nocivo”. Em uma nota a um discurso sobre ciência e artes, Rousseau cita que “… dizem que o Califa Omar, quando perguntado sobre o que fazer com a biblioteca da Alexandria, teria respondido: ‘se os livros contidos na biblioteca contêm temas opostos ao Corão, eles são ruins e devem ser queimados. Se esses livros contêm apenas doutrinas alinhadas ao Corão, são supérfluos e devem ser queimados do mesmo jeito’”. Não repitamos com a Internet o que ocorreu com os documentos da biblioteca de Alexandria.

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Vint Cerf, 2005
https://www.bibalex.org/Attachments/Publications/Files/Cerf.pdf
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A biblioteca de Alexandria
https://www.thearchaeologist.org/blog/who-destroyed-the-library-of-alexandria




In 642 AD, Alexandria was captured by the Muslim army of Amr ibn al-As. Several later Arabic sources describe the library's destruction by the order of Caliph Omar.[98][99] Bar-Hebraeus, writing in the thirteenth century, quotes Omar as saying to Yaḥyā al-Naḥwī: "If those books are in agreement with the Quran, we have no need of them; and if these are opposed to the Quran, destroy them."

https://www.stmarys-ca.edu/sites/default/files/2023-03/arts.pdf

“They say that Caliph Omar, when consulted about what had to be done with the library of Alexandria, answered as follows: 'If the books of this library contain matters opposed to the Koran, they are bad and must be burned. If they contain only the doctrine of the Koran, burn them anyway, for they are superfluous.'

― Jean-Jacques Rousseau, Discourse on the Sciences and Arts and Polemics

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