terça-feira, 23 de setembro de 2025

O bit do mal

Minha avó, quando via algo inesperado resultante de alguma ação mal pensada, citava um aforisma grego: “lá onde não se plantou, é lá mesmo que algo acaba brotando”. Isso me veio à mente quase setenta anos depois, quando vemos uma plêiade de boas intenções, que visam a uma “Internet melhor”, mas podem gerar um cenário sombrio e pobre. É muito difícil moldar o ambiente sem fronteiras que é a Internet, e leis locais tendem a falhar. É mais sábio atacar os casos específicos, punindo os agentes final e criando entendimento e consciência crítica quanto à prevenção de riscos no ambiente virtual,

Para ilustrar efeitos inesperados, imaginemos que algum eficiente mecanismo de bloqueio impeça o acesso a grandes porções da rede, Vamos nos abster, a priori, de discutir o mérito, e se isso é tecnicamente viável. O fato é que, ao poderemos acessar apenas pedaços “liberados e seguros” da rede, aquela Internet distribuída e neutra, passará a estar cada vez mais concentrada em agregados. Mas, por outro lado, as poderosas IAs continuarão a mapear a rede toda, sem limites. Teremos acesso “mediado pelas IAs” ao que não podemos mais aceder diretamente: mais poder às grandes empresas de tecnologia que, para o “nosso bem”, tutelarão a navegação,

No cerne da Internet há um conjunto de documentos, os RFCs (Request for Comments) que definem padrões, normas e boas práticas. Desde 1969, quando o primeiro RFC foi publicado, quase 10 mil já foram criados, em vasta gama de temas, desde padrões técnicos básicos, até informes históricos, experimentais e, mesmo, brincadeiras. Entre essas, há os RFCs de 1º de abril que, sob o formato técnico, trazem humor e críticas mordazes a ideias simplistas ou problemáticas, mesmo que bem-intencionadas - “ridendo castigat mores”. Assim, em 2003, Steve Bellovin, especialista em segurança e padrões da Internet, criou o RFC 3514. Economizando sempre o espaço nos pacotes de dados a transmitir, ele localizou um bit disponível. O rebatizado “evil bit” (bit do mal) indicaria se o pacote em si era ou não “malicioso”. Quaquer equipamento que recebesse um pacote com o “bit do mal” ligado, deveria descartá-lo em nome da segurança. O RFC 3514 ridicularizava “soluções mágicas” na rede.

O humor do RFC 3514 carrega uma reflexão que ressoa ainda mais em 2025, 22 anos após sua publicação. O que era uma sátira podia tornar-se um alerta profético. Teremos um bit para dizer o que é verdade ou mentira? Outro para sinalizar se o pacote é adequando a crianças? E isso em nível global, internacional? E essa “solução” parece querer que repassemos nossos dados biométricos a cada passo, provando que somos adultos. Tenho sérias dúvidas se isso protegerá crianças, mas tenho zero dúvidas que ameaçará o que nos restou de privacidade. Esse tipo de “solução” acabar como o “bit do mal”: simplista e ineficaz, e gerando, com nossos dados, grandes bases vulneráveis. H.L.Mencken, autor espirituoso e satírico, tinha um dito famoso: “Para cada problema complexo existe uma resposta clara, simples e... errada!”


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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/sera-que-poderiamos-identificar-conteudo-danoso-na-internet-com-o-bit-do-mal/
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O RFC 3514:
Abstract

   Firewalls, packet filters, intrusion detection systems, and the like
   often have difficulty distinguishing between packets that have
   malicious intent and those that are merely unusual.  We define a
   security flag in the IPv4 header as a means of distinguishing the two
   cases.

1. Introduction

   Firewalls [CBR03], packet filters, intrusion detection systems, and
   the like often have difficulty distinguishing between packets that
   have malicious intent and those that are merely unusual.  The problem
   is that making such determinations is hard.  To solve this problem,
   we define a security flag, known as the "evil" bit, in the IPv4
   [RFC791] header.  Benign packets have this bit set to 0; those that
   are used for an attack will have the bit set to 1.
2. Syntax

   The high-order bit of the IP fragment offset field is the only unused
   bit in the IP header.  Accordingly, the selection of the bit position
   is not left to IANA.
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https://en.wikipedia.org/wiki/Evil_bit
The evil bit has become a synonym for all attempts to seek simple
technical solutions for difficult human social problems which require
the willing participation of malicious actors, in particular efforts
to implement Internet censorship using simple technical solutions.
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H.L Mencken:
https://en.wikipedia.org/wiki/H._L._Mencken
“For every complex problem there is an answer that is clear, simple, and wrong.”



terça-feira, 9 de setembro de 2025

Gurizada tardia

Proteger as crianças de riscos decorrentes de sua exposição à Internet foi o tema principal nos últimos dias. Sob o neologismo “adultização de crianças” discutem-se que medidas sensatas e tecnicamente viáveis evitariam os riscos inerentes a um ambiente tão diverso (e, para crianças, inóspito) como a Internet.

Há um contraponto, não menos preocupante… Cada vez mais adultos terceirizam a solução de seus problemas e repassam suas angústias, não como dantes, a amigos e colegas, mas a desconhecidos na rede e… a ferramentas de IA, cada vez mais presentes e poderosas. Como era de se esperar há, não raro, efeitos colaterais ruins. É comum notícias sobre indivíduos que deterioraram a saúde ao seguir conselhos que receberam da IA. E há e os que desenvolveram quadros psicóticos ou tiveram perdas financeiras pelo mesmo tipo de interação. Não é um dano exclusivo da IA, visto que o mesmo efeito deletério poderia ser obtido em conversas com amigos e aconselhadores, mas é especialmente importante ter cautela com conselhos, receitas e suporte gerado pelo interlocutor artificial.

Não se trata de olhar para a IA como algo ruim ou apocalíptico, porque é indubitável que aporta facilidades e recursos que antes nos custariam muito tempo de pesquisa e consulta. Mas não podemos abdicar dos riscos e reponsabilidades que assumimos ao tomar uma decisão, nem do nosso senso crítico. Se tropeçarmos ao andar num pátio, podemos torcer o pé, mas se tropeçamos na beira de um abismo e nele despencarmos, a culpa não seria da pedra que nos causou o tropicão.

De alguma forma, o que acontece hoje com parte dos adultos é a contraparte do que nos preocupa com as crianças: uma espécie de “infantilização” dos crescidos. Estamos desenvolvendo uma “casca” muito fina e frágil, e nos sentimos ofendidos e magoados por observações e comentários que seriam perfeitamente assimiláveis há poucos anos. Talvez seja uma constante busca de tutela e proteção, ou de ter um álibi para os erros que cometemos. Fiquei ruim de saúde? Ah, foi a IA que consultei e me deu más sugestões… Estou com os nervos em frangalhos? A culpa é que a IA não entendeu meus problemas e acabou por acirrá-los. Apliquei mal as finanças? Claro que a culpa foi do orientador digital, que indicou o fundo errado. E assim seguimos, não assumindo como erradas, escolhas que, afinal, são nossas. buscando aliviar nossa consciência. Se filosofarmos com um martelo, como no livro de Nietzsche, e acertarmos nossos dedos com ele, certamente o martelo não será o culpado. Um estranho e novo equilíbrio parece se apresentar: crianças atuando (indevidamente) como adultos, e adultos buscando tutela que os proteja das proprias decisões, ou assumindo o comportamento de “rebanho”. Como em Zaratustra, o indivíduo sempre teve de lutar para manter sua individualidade,

Consultar aconselhadores humanos ou digitais é uma ótima pedida, mas acreditar automaticamente no que vem deles é faltar senso crítico, apanágio da idade adulta. Quem não julga o que escuta permanece agindo como criança.

Sobre o valor de duvidar, há outra frase de Nietzsche: “não é a dúvida que nos deixa loucos, mas a certeza”.

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/adultos-vivem-era-da-infantilizacao-para-fugir-de-suas-responsabilidades/

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https://pt.wikipedia.org/wiki/Assim_Falou_Zaratustra
https://pt.wikipedia.org/wiki/Crep%C3%BAsculo_dos_%C3%8Ddolos

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