segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

A internet não esquece

O que nos cerca muda rapidamente e nem sempre nos damos conta disso. Nos velhos tempos, por exemplo, se alguém recebia uma carta de que não gostava ou que o ofendia, podia rasgá-la ou queimá-la e ela desapareceria para sempre, sem vestígios. Hoje, com os meios baratos e quase infinitos de armazenamento eletrônico de informações, pode ser impossível nos livrarmos de um simples e-mail.

Claro que podemos apagar a mensagem que nos incomodou, mas é pouco provável que ela, de fato, suma definitivamente. Para manter a confiabilidade e garantia contra erros involuntários dos clientes, os provedores sérios de correio eletrônico guardam cópias - os "backups" - que, queiramos ou não, podem preservar coisas à nossa revelia. E sem falar do que nós mesmos colocamos impensadamente na rede e, mais tarde, concluímos que foi uma bobagem ter feito aquilo. Ah, se arrependimento matasse... Como Turiddu diz a Santuzza na ópera Cavalleria Rusticana, depois de uma acalorada discussão, "pentirsi è vano dopo l'offesa", ou seja, é inútil penitenciar-se depois de cometer uma ofensa.

Assim, o que é colocado na Internet pode tornar-se irremovível na prática: ou os próprios sistemas de armazenamento irão guardá-lo ou, se causou algum impacto bom ou mau entre os usuários, alguém terá tirado uma cópia. A conclusão é fácil de dar e difícil de cumprir, como todos os bons conselhos: não devemos colocar nada em rede aberta de que possamos nos arrepender mais tarde. Mas quem resiste à tentação de replicar algo interessante que leu, mesmo sem ter nenhuma certeza de que seja um fato real e não uma simples invenção de alguém? Minha avó usava uma expressão grega para coisas que fazemos impulsivamente e depois não mais podemos desfazer. Dizia: "pronto! caiu o açúcar na água". Se jogarmos uma colher de açúcar num tanque de água, por mais que filtremos não conseguiremos removê-lo: sempre algo sobrará diluído lá no meio.

Essa característica da rede compromete também a eficácia de um eventual direito que se postula hoje: o direito ao esquecimento. Um parêntese aqui: como engenheiro, tenho sérias dúvidas lógicas de como poderíamos ter direito sobre algo que não está em nosso controle. Eu, certamente, tenho direito de esquecer - e certamente esquecerei - coisas que estão em minha memória, mas não imagino como ter direito a que você esqueça coisas que estão na sua memória. Mesmo que esse "sua" se refira à Internet.

Bem, supondo que esse direito exista, líquido e certo, não há como magicamente apagar todas as referências a algo na rede. Mesmo que os buscadores recebam ordens para ignorar o tal conteúdo e não indexá-lo, em algum lugar estará armazenado, pronto para sair à luz num momento futuro.

Hoje, quando floresce o narcisismo e o individualismo, popula-se a rede com autofotografias nas mais variadas situações, às vezes para documentar, muitas vezes só para satisfazer o ego. O demônio, pela boca de Al Pacino no filme Advogado do Diabo, afirma categoricamente: "vaidade é meu pecado preferido". A Internet não esquece, e aí é que mora o perigo.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A verdade sai de um poço

No mar de informação infinita que há na Internet parece tarefa impossível separar o que é verdade do que é farsa. Não era assim no começo, quando a rede era basicamente acadêmica: sem apelo comercial e tendo no correio eletrônico sua principal forma de interação. Mas a Web, o acesso livre e abrangente a todos, gerou esse fluxo enorme de informação das mais diversas origens e qualidades.
Um pessimista diria que não há como retomar o rumo e estaremos cada vez mais perdidos, sem saber como separar o joio do trigo. Eu, otimista incorrigível, penso que, ao contrário, as impurezas tenderão a sedimentar, deixando o que é verdadeiro à tona. Se a Internet é espelho da sociedade e do comportamento humano, recuso-me a assumir que uma grande parte de seus integrantes seja perversa ou mal-intencionada.

Tenho um exemplo edificante: a Wikipédia, uma enciclopédia colaborativa que começou em 2001 de forma muito modesta, especialmente se compararmos com seus equivalentes em papel. Na biblioteca do colégio, por exemplo, repousavam os 82 alentados volumes de uma enciclopédia em papel, a Espasa-Calpe.

Hoje, a Wikipédia é um gigantesco (e confiável) repositório de dados. Foi construída de forma aberta, colaborativa e sem remuneração. Apesar dos riscos, ninguém pode acusá-la de ter-se deteriorado pela ação dos mal-intencionados...

Assim, é possível que a verdade prevaleça. Claro que não tenho a menor competência para discutir o que seja verdade, ou adicionar um miligrama ao que pensadores edificaram durante séculos. Bento XVI tem uma frase ótima: "a verdade, realmente, encontra força em si mesma e não na quantidade de consenso que obtém". Ou seja, não chegaremos a ela por estatística ou votação.

Mas não resisto a terminar sem uma historinha. Tivemos na Escola Politécnica, entre muitos brilhantes mestres, Wagner Waneck Martins, um professor, já falecido, que era tudo, menos convencional. Ele defendia, por exemplo, que, para simular adequadamente um ser humano, um computador não deveria ter processador numérico, já que nós, humanos, não temos.

Waneck e a verdade: um dos privilégios dos que tiveram aula com ele é que estão entre os poucos que podem alegar conhecer a definição de "verdade". Sim! Esse conceito que assombra a todos desde sua origem, foi desvendado para nós por ele, de forma cabal. "Verdade é uma mulher que sorri para você, nua e bela no fundo de um poço. Você olha ansioso para ela, mas... ela sacode o dedo e diz nãããão."

Nós, simples politécnicos, ríamos de mais essa tirada de humor. Trinta anos mais tarde, vi que mais do que uma brincadeira, havia sempre profundidade e brilho no que o mestre Waneck dizia.

Ao perambular pela Internet descobri que, atribuída a Demócrito, ou a Heráclito, ou ambos, há referência à "verdade" como "jazendo no fundo de um poço". E um provérbio francês, reproduzido em quadros que mostram uma mulher nua saindo de um poço, diz que "la vérité sort d'un puits" - a verdade sai de um poço... Sairá também do oceano que é a Internet!


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Jean Léon Gerome,1896.  La Vérité sortant du puits


segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O que há de errado com o mundo

O título é de um livro de G. K. Chesterton, de 1910. As provocações dele continuam, em boa parte, atuais, e é tentador aplicá-las à Internet. Vejamos o tema central: o livro defende que, mesmo sendo fácil achar consenso na identificação e crítica dos erros que encontramos na sociedade, a essência está em concordar que solução adequada propor. Muitas vezes não há acordo na meta, ou em como medir se foi atingida. Por falta de compreensão e de esforço, ideias excelentes - que poderiam "salvar o mundo" - são abandonadas, não por haver dúvidas quanto ao seu mérito, mas por não haver acordo em sua implantação. Chesterton diz que, mais do que um mundo onde se empilham ruínas de ideias vencidas ou superadas, temos um mundo de construções inacabadas, abandonadas.

Tento um exemplo atual: certamente há consenso de que devemos combater rapidamente a poluição. É fácil declarar apoio a esse combate. Mas qual o caminho? Uma ideia aparentemente bem recebida é desestimular o transporte privado, eventualmente trabalhando na implantação de ciclovias.

Parece algo meritório e socialmente importante, mas está longe de ser fácil e, certamente, não teremos para a "solução" o mesmo consenso que temos quanto ao "problema". Assim, por variados motivos e oposições, essa ideia pode ficar inacabada.

Internet: há consenso, sem dúvida, dos riscos que ela traz, das fraudes que lá ocorrem, das falsas informações que circulam. Ou seja, todos concordamos que há problemas na rede. O que não encontra consenso é, então, qual a rede que queremos e, consequentemente, como chegar lá. Parece mais razoável aceitar a realidade de que, ao lado de problemas, a rede nos trouxe infinitamente mais vantagens e tentar, paulatinamente e sem ferir seus conceitos fundamentais, caminhar da direção do objetivo maior e mais nobre. Nessa linha, ao final do livro, há outra analogia como parábola: ao se verificar uma praga de piolhos numa comunidade de periferia, os higienistas estipulam que se cortem os cabelos das meninas.

O certo - matar os piolhos e melhorar o ambiente - é abandonado pelo mais fácil, mesmo que isso humilhe as crianças e destrua sua autoestima. Ainda na Internet, semana passada lançou-se tentativamente uma proposta de plataforma onde projetos de qualquer origem e variados objetivos seriam divulgados, debatidos e buscariam suporte da comunidade para se tornarem realidade: a iniciativa NETmundial. Para muitos, isso contribuiria para a melhoria da rede. É claro que, também, choveram críticas, tanto dos que leram e por algum motivo não gostaram, quanto dos que sequer a leram, mas igualmente a criticam, por não se alinharem com os propositores.

É comum que uma boa ideia, em vez de ser analisada em si, na sua essência, seja prejulgada porque recebe apoio de setores que não se alinham à nossa visão.

Não sei se a Iniciativa NETmundial irá melhorar ou não a rede, mas sei que, se for abandonada sem ter sido testada, podemos estar perdendo, de novo, uma boa oportunidade. Será mais uma obra inconclusa. Diz Chesterton: "... o que está errado no Mundo é não nos perguntarmos o que está certo".

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Um hino para a Internet?

Nesta semana termina a reunião Plenipotenciária da União Internacional das Telecomunicações, em Busan, Coreia do Sul. A reunião, que traz no nome a ideia de onipotência, dá direito a voto aos órgãos reguladores das telecomunicações de cada país. O Brasil é representado pela Anatel.

Enquanto aguardamos o que emanará de Busan, vejamos quais os conceitos em cena e como isso se relaciona à governança da Internet. Uma referência recente em discussões nas redes sociais é o Tratado de Vestfália. Foi na Paz de Vestfália, em 1648, ao final de diversas conflagrações na Europa e, especialmente, da guerra entre Espanha e Holanda, que sedimentou-se o conceito de "Estados Soberanos" e que a Holanda se tornou independente.

É talvez o dilema mais crítico no debate da governança da rede: sua extraterritorialidade. De certa forma, a Internet "não assina" o tratado de Vestfália, porque não vê as fronteiras entre Estados. Por isso sua governança deve ser multissetorial, participativa e a partir das bases. É antípoda a Busan, onde o mundo tradicional se reúne.

A governança da Internet evolui muito bem entre povos latinos, que, de alguma forma, têm sido usados como paradigma no processo. Para começar - e com algum ufanismo - cite-se que a Lei Geral das Telecomunicações brasileira já em 1997 definia Internet como um "serviço de valor adicionado", que se vale da infraestrutura das telecomunicações mas que com ela não se confunde. O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), criado em 1995, é exemplo de governança multissetorial que antecede a criação da Icann, em 98. E o CGI.br, em 2009, concluiu o "decálogo" de princípios da Internet no País, para proteger a rede e melhorar o entendimento de seus conceitos.

O "decálogo" foi internacionalmente bem recebido. No Fórum de Governança da Internet (IGF) de 2010, em Vilna, Lituânia, foi saudado como uma conquista importante para a rede. Foi dele que derivou o Marco Civil para a Internet no Brasil, sancionado em 23 de abril de 2014, na abertura do encontro NETmundial, em São Paulo.

Em agosto de 2010 o Chile promulgava a lei 20.453 que trata especificamente de "neutralidade" na rede e que, em seu artigo único, determina: "não se poderá arbitrariamente bloquear, interferir, discriminar, dificultar ou restringir o direito de qualquer usuário da Internet em utilizar, enviar, receber ou oferecer qualquer conteúdo, aplicação ou serviço legal através da Internet..."

E, alvíssaras, o Congresso Italiano acaba de propor para consulta pública uma carta de direitos na rede com 14 princípios. Segue, assim, na trilha do Marco Civil brasileiro, inclusive em relação ao processo, que inclui uma ampla consulta pública. Finalmente, em Portugal uma iniciativa multissetorial para gerir uma organismo privado e sem fins de lucro que administra o ."pt" também acaba de surgir.

A Internet sempre representa uma ruptura de conceitos tradicionais. Mas é sábio e razoável levar muito em conta a soberania nacional. A Internet pode seguir livre e tranquila ao mesmo tempo em que respeita as leis dos países em que se insere. Torçamos para que a Internet sobrenade!

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Salsichas e software aberto

Tive um ótimo professor de química no colegial, chamado Tertuliano. Certa feita, conversando sobre produtos orgânicos, ele fez a seguinte provocação: "digamos que vocês queiram comprar salsichas. Há salsichas a granel, amarradas por barbante e penduradas em ganchos nas feiras. E há salsichas em lata fechada. Qual dos dois tipos lhes parece mais seguro e saudável para o consumo?"

Claro que a resposta simples e imediata foi "as salsichas em lata, professor". Afinal elas não estão expostas ao tempo, às moscas, ao manuseio, e estão bem protegidas pela lata. O professor, entretanto, fez uma observação importante e curiosa: as salsichas a granel estão expostas a tudo e todos. Precisam ser "construídas" levando em conta que devem resistir à sujeira e aos ataques usuais dos insetos. Têm casca grossa e podem ser lavadas várias vezes antes do uso. Já as que estão nas latas dependem da embalagem para sua proteção. Fora da lata são, por si, frágeis e deterioráveis. E, pior, se a lata tiver um defeito que tenha afetado seu revestimento ou permitido a multiplicação interna de bactérias, o risco é grande e invisível!

Voltei a pensar nisso quando, há muitos anos, alguém declarou peremptoriamente que para ter aplicações seguras devemos optar por programas fechados, cujo código não se divulga, porque assim estão a salvo dos hackers. Ora, isso não leva em conta as sábias ponderações do Prof. Tertuliano... Se um software é aberto e suas entranhas visíveis, tanto os bem intencionados como ou mal intencionados (as "moscas") tem o mesmo acesso à sua estrutura. O consumidor pode ter certeza de que tanto as virtudes como os defeitos estão ambos expostos.

Porém, se falamos de software fechado, passa a ser um "ponto de fé" acreditar ou não em sua resistência inata a ataques. Mais que isso, nada nos garante de que ele não se propõe a ir além do que está descrito em seu manual e, eventualmente, comportar-se de forma eticamente falha ou criminosa.

Vejamos um exemplo prático: é pacífico hoje que para termos alguma segurança em nosso computador pessoal e evitarmos contaminações e ataques precisamos de um "antivírus". Mas (e o diabo sempre mora nos detalhes) já paramos para pensar que poderes esse tipo de programa tem em relação ao nosso ambiente?

Ele se comunica com o exterior. Recebe de fora atualizações, novas versões, novas ordens. Não é, portanto, estanque. Por outro lado, é um aplicativo que tem acesso a todos os dados que estão em nosso computador. Que garantias temos de que esse programa tão íntimo nosso, mais que membro da família, não repassará indevidamente dados para fora? Bem, não devemos levar isso a um extremo paranoico, mas cautela (e caldo de galinha) nunca fizeram mal a ninguém.

A moral da história é que se temos dúvida sobre a segurança de um aplicativo, o fato de ele ser de código aberto permitirá (ao menos em tese) seu exame completo e profundo e até o conserto de eventuais falhas.

Quanto mais transparente e aberto um código, mais olhos o examinam e, parafraseando Eric Raymond (A Catedral e o Bazar), "com um número suficiente de olhos, todas as falhas serão óbvias".

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

As heresias

G K. Chesterton, jornalista e escritor inglês, em 1905 definia - certamente de forma provocativa - "herético" como "um homem cuja visão das coisas tem a ousadia de diferir da minha". No ótimo documentário sobre o Paulo Vanzolini, Um Homem de Moral, ouve-se dele: "do povo, de cada um, pessoalmente, eu não gosto, mas do povo em geral eu gosto muito!".

A internet, reflexo como qualquer estrato da sociedade humana, é povoada de indivíduos nobres e também de vilões, dos que são desprendidos e altruístas e, também, dos que caluniam, cometem fraudes e crimes. Há indivíduos de todos os tipos na internet, e deles, certamente, podemos gostar ou não, mas não há como não gostar da rede em si.

E, para definir o que é esse "objeto" de que gostamos e entender do por quê, é necessário estabelecer as características da rede, até para preservá-las e defendê-las. É importante, ao mesmo tempo, lutar pela ortodoxia da internet e pela diversidade de seus heréticos participantes.

Em 24 de abril de 2014, após meses de trabalho coletivo que culminou em dois dias de reunião em São Paulo, cerca de mil participantes concordaram em gerar um conjunto de dois documentos fundamentais para a proteção e evolução da internet: uma declaração de princípios e o que discute a evolução do ecossistema de sua governança.

A NETmundial foi, mal comparando, um primeiro "concílio" da internet, onde se buscou identificar as características e os conceitos da rede. Da mesma forma com que foi fundamental para o cristianismo o trabalho basilar, estruturante e divulgador dos primeiros apóstolos e dos concílios que definiram o seu cânone, a NETmundial pretendeu, humildemente, ter contribuído para que a internet não perca o que a fez grande, onipresente e valiosa. Que tenhamos claro o que se pretende defender e preservar.

Esse conjunto de participantes, que veio de mais de 100 países e representou de forma equilibrada as comunidades interessadas na rede, gerou uma estruturação dos princípios a ser defendidos para que a internet sobreviva da forma com que foi concebida. Neles podemos ler, por exemplo, que "a internet deve continuar a ser uma rede de redes globalmente coerente, interconectada, estável, não fragmentada, escalável e acessível, baseada em um conjunto comum de identificadores únicos...", que "...como um recurso global universal a internet deve ser estável, resistente, segura e confiável..." e que "a internet deve ser preservada como um ambiente fértil e inovador baseado em uma arquitetura de sistema aberto, com colaboração voluntária, gestão coletiva e participação, apoiando a natureza ponta a ponta da internet aberta, e buscando resolver problemas técnicos de uma maneira consistente, aberta e colaborativa". Finalmente, que "... a capacidade de inovar e criar está no âmago do notável crescimento da internet e trouxe grande valor para a sociedade global. A governança da internet deve continuar a permitir a inovação livre de barreiras."

Considerando esse o primeiro esfoço bem-sucedido para acordarem-se princípios que devem ser protegidos por todos, pode-se lê-lo como uma "boa nova" para os adeptos da rede. Um "evangelho" gerado no "concílio" que foi a reunião da NETmundial. E de São Paulo surgiu uma carta aos habitantes do novo mundo da rede, estabelecendo aspirações e desejos.

Nessa analogia de quase dois mil anos, é claro que "heresias" surgem e surgirão. Há os que gostariam de ver a internet com gestão centralizada e concentrada em Genebra, há os que veem nela apenas um ambiente de negócios fabulosos, há os que a veem como ferramenta de aglutinação de partidários, há os que a veem como uma experimentação fundamentalmente técnica. Um cânone torna mais claro para os defensores da rede o que pode ser feito para expurgá-la de heresias que buscam sua destruição.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

As novas coisas

Há um princípio inescapável, uma espécie de "maktub" tecnológico, que nos mostra, historicamente, que "tudo o que pode ser feito, num determinado momento acaba sendo feito". Eletrônica embarcada tornou-se hoje a solução mais simples, flexível e barata para o controle de qualquer dispositivo doméstico. E ubíqua: temos processador eletrônico embutido em praticamente tudo: na geladeira, no televisor, no ar condicionado, no painel do automóvel, no relógio. Esses equipamentos, pelo fato de serem controlados por algum programa rodando no processador, tem agora a possibilidade de serem "ativos". Ao adicionarmos acesso remoto sem fio para "conversarmos" com eles de forma simples e barata (e, por que não, usando a própria internet), não estaremos longe de concluir que, afinal, eles podem também começar a "falar" entre si. Se esses dispositivos podem falar, acabarão certamente por falar entre si. Maktub.

Outra evolução interessante: objetos de menor valor e mesmo descartáveis podem usar RFID, etiquetas digitais legíveis via rádio a certa distância. Isso permite que dispositivos tenham uma forma muito simples de perceber o mundo ao seu redor.

Juntando-se os fatos, pode-se imaginar uma predisposição a que emirja desse cenário uma "consciência das coisas" e que estejamos entregando a elas, de alguma forma, cada vez mais controle e dados de nossa própria vida.

Muito conforto pode advir quando nossos servidores eletromecânicos compartilham do que sabem e procuram agir para nosso bem. Porém, há sempre o outro lado da moeda.

Iniciemos pelo lado positivo. Se nossa geladeira, por exemplo, possuir formas de conhecer o que nela está guardado (com RFID) e souber de nossas preferências, ou do que necessitamos, pode nos avisar se um produto importante está em falta, ou prestes a perder a validade. Mais que isso, pode, usando a internet, pedir automaticamente a algum fornecedor que reponha o estoque. Dispositivos vestíveis como relógios e óculos podem monitorar nosso estado de saúde e repassar qualquer novidade ao nosso médico. Automóveis inteligentes já conversam para negociar ultrapassagens, escolher rotas e saber quando um semáforo irá fechar.

Imaginemos agora esse "admirável mundo novo": enquanto estou fora de casa, meu relógio notou que hoje é meu aniversário e, para me fazer uma surpresa, avisou à geladeira e aos meus amigos próximos. A geladeira apressou-se em reabastecer o estoque de cervejas e encomendou meu bolo preferido, de nozes. O carro estaciona, após avisar o garagem que cheguei e, lógico, o elevador já está esperando no andar certo. Entro e surpreendo-me com os amigos todos me cumprimentando, enquanto o aparelho de som dispara um "parabéns a você..."

Mas a informação "vazou"! "Amigos do alheio" souberam e, de posse do código do prédio, entraram e estão agora "convocando" a todos que se amontoem no banheiro, enquanto fazem uma "limpeza" do apartamento. Ainda consigo ouvir o equipamento de som pedindo por socorro ao notar que está sendo indevidamente desligado!

Sonho? Pesadelo? Aguardemos...