terça-feira, 22 de janeiro de 2019

A um Inovador

Estamos (sempre) no limiar de algo sensacional e inaudito, que pretende mudar radicalmente o mundo que conhecemos. Já ouvimos outras vezes e, sim, pode ser que aconteça essa “evolução disruptiva” sem volta. Parece-me clara a possibilidade da “disrupção”, mas é menos clara a semântica do “evoluir”. Afinal, tanto o bom como o mau evoluem, cada uma buscando com mais eficiência seu alvo próprio.

Em tudo há disrupção em andamento. Acabamos de ouvir que nascem humanos geneticamente modificados, o que, mesmo que eivado das “melhores intenções”, é disruptivo. Na engenharia esse tipo de experimento, em que um sistema não totalmente conhecido é testado, chama-se “caixa preta”. Sem saber o que tem dentro, mexemos nos parâmetros de entrada e, do comportamento que ele passa a exibir, tiramos conclusões.  De uma “caixa preta” mecânica a um ser humano há (ou, ao menos, havia...) uma grande diferença:a caixa preta que deu errado pode ser jogada fora. Não ouso pensar no que se faria com o experimento humano num caso equivalente.

Na informática e, claro, na Internet temos processos semelhantes em diversas áreas. Vejamos, por exemplo, informação na rede. No passado, foi a entrada em cena do modelo de publicidade paga que viabilizou o que chamamos de “serviços grátis abertos a todos”. A existência de potenciais clientes a serem atingidos fez com que anunciantes remunerassem os meios, que passaram a ser acessíveis a todos. Há compradores potenciais e o anunciante paga para acessá-los, mas atirava a esmo. A Internet permitiu “calibrar” o tiro ao perfilar os usuários e agregá-los.  A tentação seguinte foi aumentar o número dos prosélitos, catequizando indecisos e influenciáveis. O modelo de negócio foi ficando cada vez mais rebuscado e inseparável do meio. 

Mas tudo o que é complexo acaba por ser vulnerável e, assim, assistimos a diversos episódios de vazamentos e manipulação. Mesmo quando o modelo é em si claramente mostrado aos usuários, poucos chegam a buscar entendê-lo. Sequer o leem. Afinal, melhor continuar usando e não prestar atenção aos detalhes. Canais que teriam sido criados com a melhor das intenções, permitiram abusos por parte dos maliciosos.  Um “cookie”, facilitador para a navegação do usuário, acaba sendo usado na monitoração. Ao haver a possibilidade de enviar código para dentro do equipamento dos outros, alguém usará isso para mandar código malicioso.

O futuro da informação pode ser uma ladeira escorregadia. Inicialmente vendiam-se produtos e serviços e logo pensou-se em reforçar marcas junto a clientes fiéis (“branding”), o passo seguinte foi calibrar o público atingido (“targeting”) e, finalmente, modular o próprio tipo de informação que gere mais ressonância a cada comunidade.  Quando a informação vira o produto, sua acurácia é menos importante que o retorno que se consegue ao cativar o grupos visado. Enviar o que querem ouvir é uma forma insidiosa de gerar resultados econômicos e sobrevivência. Talvez uma sobrevivência efêmera.

Alberto Gomide, um pioneiro da Internet no Brasil e um espírito aguçado e crítico com quem convivi algumas décadas, ao ouvir uma ideia nova, promissora mas mal testada, lembraria o poema “A um Rato”, de Robert Burns: “... os melhores projetos de homens e ratos frequentemente acabam por falhar, deixando dor no lugar da prometida alegria...”




He Jiankui da SUSTech, anunciou a primeira edição de código genético de embriões humanos...

To a Mouse (Robert Burns): https://en.wikipedia.org/wiki/To_a_Mouse

...
But Mouse, you are not alone,
In proving foresight may be vain:
The best laid schemes of mice and men
Go often askew,
And leave us nothing but grief and pain,
For promised joy!

...

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Cuidado com o que pedimos...

    Georges Bernanos, um francês que acabara de passar 7 anos no Brasil, escreveu em 1945 “A França contra os Robôs”. Além de discutir assuntos do pós-guerra, é também um apelo a favor da liberdade, e antecipa situações que hoje nos parecem familiares: Bernanos alerta “...o problema não está nas máquinas”, mas “no número crescente de homens habituados desde a infância a desejar apenas o que as máquinas lhes podem dar”. Sobre liberdade, diz: “Não se trata de saber se essa liberdade torna os homens felizes, nem mesmo se os torna morais. Não se trata de saber se ela favorece mais o mal que o bem... Basta-me que ela torne o homem mais homem, mais digno de sua perigosa vocação de homem...”, “um mundo ganho para a técnica está perdido para a liberdade”. Orwell, na Revolução dos Bichos, define: “se liberdade significa algo, será sobretudo o direito de dizer aos outros o que eles não querem ouvir”. A Internet levou essa possibilidade ao extremo.

    Se entendermos a rede como um meio, ela agiria como um transmissor passivo do que “falamos”. Aliás, os sons são ondas mecânicas de pressão num meio específico, o ar – nada se ouve no vácuo. Ninguém acharia razoável culpar o “ar” pelas bobagens que eventualmente ouvimos e assim, em princípio, também não se deveria responsabilizar a Internet pelo que nela circula. Surgem, entretanto alguns complicadores: no “ar” da Internet existem “microfones” e “alto-falantes” que podem captar o que falamos e o repassá-lo a destinos muito além do que se pretendia atingir. E na rede formam-se “clubes”, baseados em modelos de negócio, que visam a facilitar, ainda mais, a disseminação do que é dito. A dinâmica da Internet fará com que uma iniciativa modesta, mas que tenha caído no gosto dos internautas, em poucos anos transforme-se num império poderoso, graças às informações que amealhou de seus associados e que redistribui fartamente. Quanto aos nossos dados, espera-se que um “clube” sério exponha claramente o que com eles pretende fazer, e (alvíssaras!) temos hoje uma lei específica para isso no Brasil. Mas, e quanto ao que circula na Internet facilitado pela ação dos “clubes”? O dilema persiste: qual o papel atribuível ao viabilizador do processo de interação? Ao modo do correio e do papel, parece-me claro que o simples fato de serem portadores de eventuais informações incorretas, nefastas ou ofensivas não os fará terem responsabilidades sobre isso. Diferentemente, num meio “editado” como os jornais, quando se publica algo falso denigridor haverá minimamente uma retratação. Isso aplicaria às redes sociais e suas ferramentas? Se agem como “um meio”, estariam isentas de responsabilidade. Por outro lado, se tem poder editorial, se são ativas, a coisa pode mudar de figura. Penso que o correto é sempre permitir a liberdade de todos e, caso alguém se exceda, que seja individualmente responsabilizado pelo seu ato. Querer fazer de uma ferramenta um Catão da moral e da verdade, pode ser um sério tiro pela culatra. Clamar por esse tipo de ação pode significar que estamos dando a elas um poder ainda maior e mais perigoso. Oscar Wilde já havia alertado “...quando os deuses querem nos castigar, atendem aos nossos pedidos”.

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Fantasmas...

É Natal, tempo em que pensamos no que passou, enquanto tentamos manter esperanças no que ainda virá. A importância da data independe da religiosidade de cada um - afinal, em nossa cultura, o Natal e o Ano Novo estão ligados fortemente: vem aí 2019. Essa numeração baseia-se, com maior ou menor precisão, num evento em Belém, que marcou o reinício da contagem do tempo para boa parte do mundo.

A Internet é quase cinquentenária e tentarei uma conexão com uma lembrança igualmente antiga: a leitura de “Um Conto de Natal”, do Dickens. A novela, publicada há 175 anos e que teve inúmeras traduções e adaptações, talvez seja mais conhecida pela sua personagem central, Ebenezer Scrooge, que a Disney transmudou em Tio Patinhas. Qual o paralelo?

Na história, o avarento Scrooge é dono de um pequeno escritório (seria uma “start-up” daqueles tempos?) e tem um único funcionário, que é muito dedicado, mas mal pago. Com quatro filhos - um dos quais bem doente e mesmo sem conseguir fazer frente às despesas, ele mantem a bonomia. Numa noite o insensível Scrooge é visitado pelo fantasma de seu finado sócio, que o adverte a ser atento às agruras do próximo, e anuncia a visita de tres fantasmas, que trarão mais luz para Scrooge se emendar. O primeiro é o fantasma dos Natais Passados, que o inunda de melancolia ao fazê-lo relembrar os tempos de criança, quando para ele o Natal era época feliz. O segundo é o do Natal Presente, que mostra a agitação das compras e comemorações, mas também indiferença e injustiças. Luzes e futilidade. Esse segundo fantasma carrega consigo duas ameaças que poderão frustrar o futuro: a ignorância e a miséria. O terceiro é fantasma dos Natais Futuros. Calado, aponta a Scrooge um porvir soturno, de crescente isolamento e solidão.

A Internet pode representar, ao mesmo tempo, os três espectros que visitaram Scrooge e servir de alerta. A rede nos dá acesso a preciosos documentos do passado, que almas abnegadas colocaram para nosso proveito. Há textos e entrevistas históricas preservados, interpretações emocionantes de obras musicais, um mar de dados e informações para nosso uso, a que não teriamos acesso de outra forma. Por outro lado, o presente da rede tem facilitado o prosperar de tensões e divisões, que antes não eram tão presentes. A vaidade de ser partícipe de qualquer discussão nos exorta a tomarmos posições impensadas, muitas vezes agressivas. A nossa exposição a tudo pode ser um fardo que supere nossa capacidade de assimilação. Quanto ao futuro, acumulam-se incertezas, especialmente se optarmos por trilhar um caminho que dispensa nosso legado histórico. O que o futuro nos reserva dependerá de como interpretaremos os sinais do presente, cada vez mais claros.

Os Fantasmas de Natal converteram o Sr. Scrooge. Quem sabe os Fantasmas da Internet podem agir na mesma direção, perpetuando entre nós o espírito natalino. Em outro texto, bem humorado, Drummond parece entrever que, em época melhor, até a Internet das coisas participará (!). No “Organiza o Natal” achamos: ...”os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, <...> o correio só transportará correspondência gentil”

Tenhamos todos um Ótimo Natal!

http://www.editorarideel.com.br/wp-content/uploads/2015/07/MIOLO_Conto-de-Natal.pdf
https://www.ibiblio.org/ebooks/Dickens/Carol/Dickens_Carol.pdf


Charles Dickens' A Christmas Carol 1971 Oscar Winner HD Richard Williams Animation:

https://www.youtube.com/watch?v=ZTzyC9CZuOA

https://en.wikipedia.org/wiki/A_Christmas_Carol



First edition frontispiece and title page (1843)

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Outros tempos, outros ventos

Jon Postel, pioneiro da Internet e gestor dos recursos coordenados da rede (nomes de domínio e números IP), usou certa vez, em reunião do IETF (força-tarefa de engenharia da rede), uma camiseta onde se lia “vivemos em tempos interessantes”. Se ele estava sendo óbvio, ou era na acepção de Nelson Rodrigues: “apenas sábios, profetas e gênios enxergam o óbvio”. A coisa é, entretanto, mais capciosa do que parece. Na cultura chinesa (… repito como ouvi dizer) “tempos interessantes” são característicos de mudanças, de crises. São tempos de pouca paz, muita turbulência e inquietudes. Desejar a alguém que “viva tempos interessantes” estaria longe de ser um bom augúrio e, sim, quase um esconjuro. Afinal tempos amenos e de enraizamento são “desinteressantes”. Para o bem ou para o mal, vivemos tempos interessantíssimos. 

Há duas semana houve em Paris o 10.0 fórum de governança da Internet (IGF). Na abertura, discurso do português António Guterres, secretário geral das Nações Unidas, seguido pelo do presidente da França, país hospedeiro, Emmanuel Macron, ambos disponíveis na íntegra na rede a quem quiser aprofundar-se. Limito-me a registrar que Macron discorreu por mais de hora, e abordou temas improváveis a um presidente, até pela abundância nos detalhes técnicos. Não tentarei analisar o cerne do discurso mas, de forma superficial, pareceu-me claro que ele se propõe a encabeçar uma “terceira linha” na rede, sua alternativa ao embate “lado norte-americano” versus “lado chinês”. Há, é claro, motivação pessoal e busca de espaço, mas penso importante não cairmos em generalizações fáceis, que parecem atender às angústias desses “tempos interessantes”. Pelas tantas, ele propõe a busca do que seria uma “Internet higienizada”, e uma nova abordagem de regulação, partindo da base, diversa da tradicional que parte do topo. Em tema de Internet, devemos ter cuidado com ambas as abordagens, seja para não cair em censura central, seja para não dar um poder desmesurado a quem apenas é uma aplicação privada sobre a rede.

O desse raciocínio é perder-se de vista a floresta ao nos concentrarmos nas árvores. Há que se ter clara ideia de como conceituar a Internet, separando-a das aplicações que nela nascem (e morrem) o tempo todo. A rede básica é o conjunto de protocolos e equipamentos que nos permite ir a qualquer destino, sem restrições. Centra-se aí o conceito de neutralidade e a luta para manter a rede aberta, universal e única. Quase equivale ao direito de ir e vir. As “ruas” da Internet transitáveis igualmente por todos, mesmo que a “casa” em cuja porta batemos não nos dê acesso. Ou nos cobre pelo acesso. Aplicações criadas na rede não se confundem com o caminho até elas, e a rede permanece, mesmo que o conjunto de suas aplicações mude ao sabor das preferências dos usuários. Como no coliseu romano, nosso “clique” é nosso voto e ele decide quem terá sobrevida. Exemplos não faltam: o que é feito do “MySpace”, do “Orkut”, do “Second Life”, do “Pokémon”...? Mudam os ventos, mas a rede deve seguir adiante.

Respeitando as regras básicas da Internet, seus protocolos aceitos por consenso, estamos livres para criar novos artefatos e submetê-los ao crivo dos potenciais usuários. A rede, este ecossistema espantoso e livre, deve permanecer íntegra.



http://igf2018.fr/wp-content/uploads/2018/11/WIP-Paris-Messages-.pdf

https://www.intgovforum.org/multilingual/content/igf-2018-speech-by-french-president-emmanuel-macron

https://www.intgovforum.org/multilingual/content/igf-2018-address-to-the-internet-governance-forum-by-un-sg-ant%C3%B3nio-guterres

https://www.cfr.org/blog/unpacking-frances-mission-civilisatrice-tame-disinformation-facebook


terça-feira, 27 de novembro de 2018

Obviedades

Nesta terça-feira 27 de novembro haverá em Londres mais um ato do “affaire” Facebook – Cambridge Analytics. Conta com a presença de representantes legislativos de 8 países, incluindo o Brasil. Um tema que está longe da pacificação mas, ao menos para nós, com a promulgação da LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados, estamos num momento melhor  .

A exposição e uso inadequado de dados pessoais, mesmo não sendo algo recente, ganhou um impulso exponencial com a Internet quando passou a ser modelo de negócio de plataformas como as redes sociais.

Se remontarmos ao início da comunicação coletiva, lembraremos que meios impressos antigos contavam com o suporte financeiro provido pelos seus assinantes. Não foi muito diferente a implantação do rádio, que também lançou mão de “rádio-clubes”, de onde imaginava receber os recursos para instalação, equipamentos e funcionamento.

A entrada em cena da publicidade alterou completamente esses modelos econômicos. Se por um lado, com os recursos dos anunciantes os meios puderam se difundir entre todos os públicos e não apenas entre os antigos assinantes, por outro o consumidor potencial passou a ser objeto visado. Rapidamente rádio e televisão firmaram-se como formas “gratuitas” de difusão de entretenimento e notícias, contando com o fluxo crescente das verbas de publicidade. A publicidade àquela época era um “jogo cego”: classificados de jornais atingiam indistintamente um público genérico. Pequena parte dos leitores iriam se interessar, por exemplo, pelo anúncio dos imóveis anunciados enquanto outros, a maioria, iriam usar aquelas páginas para embrulhar peixe ou forrar a gaiola do canário.

Com a Internet e a expansão da Web houve a possibilidade de medir e calibrar o impacto de anúncios. Podendo saber das visitas a cada setor das páginas, vendem-se anúncios mais efetivos e, logicamente, mais caros. Saber quem está vendo meu anúncio, ou quem potencialmente se interessaria pelo meu produto, melhora drasticamente o resultado das campanhas.

A aposta na publicidade aumentou muito, e permitiu que serviços sofisticados, que demandam recursos imensos pudessem ser implementados na Internet, dada a expectativa de lucros ao colecionar e selecionar os possíveis interessados nos produtos anunciandos. E, claro, essa coleta de dados viabiliza toda uma nova leva de serviços (… com os respectivos riscos) à comunidade. Saber onde estão os automóveis num dado momento permite sugerir caminhos. Saber que tipo de remédios alguém procura na rede pode indicar alguma enfermidade. Conteúdos lidos podem revelar interesses e propensão ideológica. E... saber o que você escreve e de que comunidades participa, delineará seu perfil. Tudo isso passa a ser parâmetro, desde seleção de candidatos a emprego, ofertas de seguro de carros e de planos de saúde e até, claro, para disparar ações que podem trazer ainda mais riscos.

O modelo de negócio que nos dá acesso livre e grátis a serviços e informações, hoje indispensáveis, funda-se em obter e usar nosso perfil como consumidor, mas também permite conhecer nossas características pessoais, emocionais e ideológicas. É quase uma barganha faustiana. A forma de minimamente obter alguma proteção é estabelecer limites éticos, transparência nos interesses e ações, e razoabilidade quanto aos dados solicitados. Aí, ao menos, poderemos contar com a ajuda da LGPD.


== Molon sabatina vicepresidente do Facebook (legendado):

=== https://www.youtube.com/watch?v=3CHl2FCuKE4

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Em busca de alicerce

Avanços da tecnologia sempre provocam especulações sobre o “futuro da humanidade”. Já quanto à linguagem escrita, Sócrates, cujas ideias chegaram até nós transcritas por Platão, achava que escrever sobre algo era bem mais pobre que discutir oralmente sobre aquele tema. Seria uma representação limitada do argumento, como um retrato é em relação ao retratado. A chegada e a popularização da imprensa também gerou alertas, para não falar das diatribes sobre a revolução industrial. Estamos às voltas com a revolução da informática e da automação e, desta vez, pode ser que realmente haja motivos sérios para preocupação.

Uma forma de olhar para o que vem pela frente passa por constatarmos que agora há uma liderança da tecnologia em relação ao peso que damos a outras considerações mais humanísticas. O poder computacional cresce exponencialmente há décadas e nos leva a um descompasso com outras estruturas de pensamento. Afinal, tudo o que pode ser feito acabará por ser feito, ou seja, podem ser inúteis maiores preocupações com as consequências.

Topei com o artigo “O fim do Iluminismo”, do conhecido Henry Kissinger, em que ele examina a necessidade de uma política associada aos avanços da Inteligência Artificial. Um trecho, já no final do artigo, chamou-me a atenção. Traduzo-o rudimentarmente: “O iluminismo foi liderado por avanços na filosofia, disseminados pelas tecnologias então existente. Nossa época move-se em direção oposta. Geramos uma tecnologia potencialmente dominante, sem uma filosofia orientadora. (...) Assim, penso que a prioridade acima das demais deveria ser buscar formas de relacionar Inteligência Artificial com a nossa tradição humanística”.

Muitos já comentaram, por exemplo, sobre um dilema na programação de carros autônomos e como lidar com acidentes inevitáveis. A programação deveria buscar diminuir o número de vítimas? Ou fazer uma escolha entre as vítimas potenciais por gênero? Idade? Status? Deveria buscar a preservação do proprietário e passageiros do veículo acima de outras vidas? O prestigioso MIT (Instituto de Tecnologia de Massachussetts) criou uma forma de mapear as respostas que se obtêm, mundialmente, a esses quesitos éticos. Está em moralmachine.mit.edu. O mais perturbador, entretanto, é notar que as respostas obtidas mostram perfis éticos/morais bem diversos, conforme a cultura e costumes locais. Certamente a Internet tem “culpa no cartório” quando facilitou o acesso a todos, sem distinções de cultura local, interesses, formação. Hoje Sócrates estaria batendo boca numa rede social e é bem provável que alguém pedisse sua exclusão. Não é claro para onde vamos mas, em contraponto ao inegável benefício de expressão que a Internet possibilita a todos, há também que se manter em vista valores éticos inscritos em nossa cultura. Vem-me à mente um texto de Chesterton em que defende uma democracia onde todos devem ter voz, não apenas os que estão vivos. “A voz de nossos mortos chama-se tradição. É a parte da democracia que inclui nossos ancestrais, e que não se submete aos que estamos momentaneamente vivos”.

Parece-me vital voltarmos a buscar algum alicerce com raízes mais profundas.

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Qual deve ser a decisão de um veículo autodirigido?
moralmachine.mit.edu
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"O Fim do Iluminismo"
https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2018/06/henry-kissinger-ai-could-mean-the-end-of-human-history/559124/
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em "Orthodoxy" G. K. Chesterton
http://www.leaderu.com/cyber/books/orthodoxy/ch4.html

<...> Tradition may be defined as an extension of the franchise. Tradition means giving votes to the most obscure of all classes, our ancestors. It is the democracy of the dead. Tradition refuses to submit to the small and arrogant oligarchy of those who merely happen to be walking about. All democrats object to men being disqualified by the accident of birth; tradition objects to their being disqualified by the accident of death. Democracy tells us not to neglect a good man's opinion, even if he is our groom; tradition asks us not to neglect a good man's opinion, even if he is our father. I, at any rate, cannot separate the two ideas of democracy and tradition; it seems evident to me that they are the same idea. We will have the dead at our councils. The ancient Greeks voted by stones; these shall vote by tombstones. <...>
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terça-feira, 30 de outubro de 2018

Mas isso é defeito ou característica?

A versão em inglês desta frase é muito conhecida por quem usa programas de computador: “is it a bug or a feature?”. Ela roda pela área de informática há muito tempo. Pode causar algum espanto o uso da palavra “bug” (inseto) para indicar um defeito. Mas, na computação, há uma base histórica e anedótica para isso. Reza a lenda (e há documentação) que, quando os computadores ainda usavam válvulas eletrônicas e relés eletromecânicos, houve certo dia um mal funcionamento inesperado em uma máquina. Após buscar a causa do problema, verificou-se que um inseto se introduzira entre as lâminas de um relé do computador, causando o mau contato deletério.

O primeiro “bug” foi, assim, literal e um evento mecânico. Com a crescente complexidade da programação, além de eventuais erros físicos em equipamentos, erros de programação passaram a ser muito frequentes. Um programa complexo é de difícil depuração. Mesmo com todo o cuidado do programador, é provável que erros e incoerências tenham escapado. Por extensão do que ocorreu com o relé e o inseto, os erros de programação passaram a ser chamados “bugs”, e o processo de examinar cuidadosamente o programa para livrá-lo dos eventuais erros “debugging” – ou seja, “desinsetização”.

Além dos diversos tipo de erros que podem estar ocultos num programa, ele pode apresentar características inesperadas, introduzidas a propósito no programa, ou, simplesmente, decorrência de alguma inconsistência ou de um “bug”. Um dito irônico afirma que, uma vez detectada a existência de um erro, se ele for convenientemente documentado no sistema, evoluirá e passará a ser considerado uma “característica”. No processador M6800 da Motorola havia uma instrução de máquina não documentada e que, se executada, faria o processador simplesmente desistir de prosseguir e passar a se comportar como um simples contador. O pessoal havia a denominado como “pare e pegue fogo” (HCF,“halt and catch fire” em inglês). Provavelmente esqueceram-se de removê-la após o fim da fase de projeto.

Enfrentamos esse tipo de problema em situações as mais diferentes do nosso dia a dia. Se algo é reconhecido como insuficiente ou gerador de risco, pode-se tentar consertá-lo ou, saindo pela tangente, avisar os usuários que “não é bom” usar determinado recurso, porque pode redundar em dor de cabeça. Nos mapas antigos, por exemplo, as regiões desconhecidas e inexploradas eram marcadas como sendo áreas em que “há dragões”, ou seja, melhor seria não ir para aqueles lados: um erro transformado em característica. Quem quiser prosseguir, que o faça por sua própria conta e risco.

O risco, aliás, é sempre inerente à pesquisa – não se faz investigação sem correr algum risco, mas há que manter em mente a necessidade de não criar riscos adicionais pela simples dificuldade em depurar o que fizemos, ou de não gerar situações que saiam do controle. 

O simples ato de tentar prever tendências e resultados, mesmo que executado com plena isenção, pode envolver metodologias e amostras nem sempre controláveis nas condições disponíveis. 

Mas, como somos todos humanos e falíveis, sempre podemos lançar mão de alguma explicação posterior, que transforme o que pareceria uma falha metodológica ou de aplicação, numa interessante “característica inesperada”. Mas a quem sofreu as consequências, não alivia saber se elas foram devidas a um “bug” ou a uma “feature”.


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O "bug" do Mark II em pessoa!

https://en.wikipedia.org/wiki/Software_bug