terça-feira, 20 de junho de 2023

O busílis da questão

Que sempre houve mal-intencionados, fraudadores e mentirosos é inegável. Mas, graças à Internet e sua onipresente agilidade, tudo circula muito rapida e superficialmente. Somemos uma certa fragilização dos que participam no processo: afinal há muitos neófitos na era da comunicação digital não desenvolveram ainda couraça ou filtro para separar o joio do trigo, e fica fácil entender a corrida, nem sempre racional e sensata, em busca de lenitivos para os males que nos afligem.

Na última reunião da ICANN, semana passada nos EUA, Washington, um tema continua em voga: como tratar do chamado “abuso do DNS”. O DNS é o sistema que cuida dos nomes de domínio dos locais, entes e serviços na Internet. Ele visa a traduzí-los para números IP – os reais identificadores na rede. É claro que há sítios na Internet que tem conteúdos inadequados, propositadamente falsos ou, mesmo, ilegais numa dada cultura e legislação. Mas também é claro que a rede e o DNS propiciam formas de se identificar onde esses conteúdos estão alocados. O caminho que parece adequado é ir-se direto ao responsável pelo sítio onde o conteúdo se hospeda e verificar o que ocorreu (afinal, o sítio pode ter sido invadido, e o conteúdo lá encontrado sequer ser de conhecimento do reponsável listado).

Mas os “apressados em buscar soluções rápidas” advogam que remover o nome de domínio da tabela do DNS, prescindindo até de exame judicial prévio do caso, pode ser uma solução. Tirar a funcionalidade de um nome de domínio não implica em remover o conteúdo visado ou a possibilidade de acesso a ele. E pode ser um alerta para que o malfeitor apague as provas e “reencarne” com outro nome de domínio, em outro lugar da rede. A função de um registro da Internet é simplesmente prover uma tradução rápida e eficiente de um nome de domínio para um endereço IP. Não passa nem perto do tema “conteúdo eventualmente lá hospedado”. Não é diferente do que um serviço de localização de endereços faz, quando pedimos para levar-nos a uma rua. Faria sentido que ele respondesse “Não posso levá-lo a essa rua. Dizem que lá há atividade considerada ilegal”?

Atalhos como esses, para aliviar tensões e amenizar problemas, apenas tendem a piorar as coisas e atingir inocentes que nada tem com a questão. É fundamental entender a Internet antes de tomar providências açodadas, até porque o próprio conceito do que seja legal varia. Há países em que bebida alcoólica é ilegal, e outros em que a venda de drogas é legal. Na Internet, tudo deve poder ser acessado, e o ônus de alguém usar um serviço ilegal numa jurisdição pode ser até mesmo do próprio usuário. Duas frases no tema: de G. K. Chesterton, “não é que eles não consegam encontrar a solução. É que eles nem conseguem enxergar o problema”, e de H. L. Mencken, "sempre há uma solução fácil para cada problema complexo – uma solução simples, aceitável e… errada."

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comentário sobre "busílis", palavra que está consignada no dicionário Moraes, portanto pode ser usada sem susto:
https://pt.wiktionary.org/wiki/bus%C3%ADlis
"A origem de busílis é controversa. Vem do latim "in diebus illis" (naqueles dias), o qual algum copista dividiu ao final da página como "in die" e na outra como "bus illis" gerando controvérsia sobre o significado de "busílis" até que se percebeu o problema central era a própria palavra."
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ICANN77
https://meetings.icann.org/en/icann77

"DNS abuse"
https://www.icann.org/dns-security-threat
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terça-feira, 6 de junho de 2023

Tecnologia e neologismos...

"As odds de uma bet"

Efeito lateral da tecnologia é sua interferência na liguagem. Em adição, temos hoje IA gerando textos em português escorreito. Arrisco colocar minha colher torta nisso: causa um certo desconforto ver a introdução descuidada de novos vocábulos. Tecnologia, área pródiga em novidades, precisa de que palavras sejam criadas, neologismos que expressem melhor novos entes e conceitos. Nada há de errado nisso, mas deveríamos ter cuidado na ânsia de nos mostrarmos “atualizados”. Penso que há ao menos tres aspectos a avaliar no momento de usarmos um neologismo ou um estrangeirismo: que sua necessidade seja real (não apenas um sinônimo charmoso de palavra já existente), que se busque, assim que possível, seu aportuguesamento conforme as regras da linguagem, e que, na criação de eventuais compostos, respeitemos as regras e a semântica dos radicais usados (lembrando que “fobia” é medo...)

Adotou-se “futebol”, o aportuguesamento do importado “football” (e prevaleceu sobre propostas bizarras, como “ludopédio” ou “pedibólio”: não há como, nem porque, insistir numa inglória luta ao que caiu no uso popular). A mesma lógica gerou abajur, charme, sutiã e, recentemente, copidesque, leiaute, becape - vocábulos aportuguesados que enriquecem o idioma. O risco é que, no afã de inovar, esquecem-se expressões preexistentes perfeitas. Precisaríamos de “delivery” no lugar de nossa antiga “entrega a domicílio”? (e, sendo proparoxítona, que ao menos se gravasse “delíveri”). A disseminação de “delivery” parece irreprimível, mas por que usaríamos “printar” no ligar de “imprimir”, ou “off” se temos “desconto”? Mostrengos ainda piores grassam por ai: outro dia mesmo ouvi no rádio, “profitizar” no sentido de lucrar, render (do inglês “profit”). Há quem use “bet” como sinônimo de “aposta” e “odds” como alternativa para “probabidade”. Parece que um “poder oculto” é conferido a quem utilizar palavra importada, mesmo quando há sua conhecida correspondente nacional…

Um último ponto que talvez mereça alguma atenção é o uso de sons de caracteres que não faziam parte do idioma de Camões… Esses estrangeirismos ainda não aportuguesados, segundo Napoleão Mendes de Almeida, deveriam aparecer apoiados em muletas: aspas ou itálico. Ouvir um “i” ter som de “ai” como em “site”, dificulta os que estão aprendendo português. O brilhante e saudoso Millôr escrevia “saite” para sítio na Internet: uma palavra que os anglófonos importaram do latim e nos, ao a reimportarmos, aceitamos usar seu “i” com som de “ai”…Miremo-nos no exemplo de futebol, basquete, beque, que se “vestiram de português” para bem frequentar nossa língua.

Para encerrar a encrenca em que me meti, leio que, depois de Carlos I, e Carlos II, temos agora Charles III… Se no passado nomes de reis eram convertidos ao nosso idioma sempre que possível, agora os mantemos na língua de origem? Não será mais Luiz XV, mas Louis XV? Teremos Richard, the Lionhart em lugar de Ricardo Coração de Leão? Pedro, o Grande, passará a Pyotr?

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Sobre neologismos e estrangeirismos

https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/neologismos-e-estrangeirismos/7408

https://repositorio.ifpb.edu.br/handle/177683/751

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odds e bet

A Wikipedia redireciona "odds" para "chance":

https://pt.wikipedia.org/wiki/Chance

Já para "bet" - aposta - há um monte de sítios tratando desse tema...







terça-feira, 23 de maio de 2023

Livre Pensar

Importamos debates de todo o mundo, como se já não tivéssemos temas em profusão por aqui mesmo. Assim é que soma-se às já complexas discussões sobre a extensão e a forma adequadas para uma legislação sobre plataformas e redes sociais, o tema sobre a remuneração cruzada de setores econômicos, normalmente identificado com o rótulo de “fair share”.

Estando eu muitíssimo longe de entender os complexos meandros da economia, meu primeiro espanto é com o que me parece ser uma “inovação”. Não conheço exemplos em que integrantes de uma área de atividade repassem recursos, por lei, diretamente a outra área de atividade. A mim não convence o argumento de que o crecimento vigoroso de um determinado setor exige esforços não previstos ou provisionados em outro setor e, portanto, seria necessário um financiamento cruzado… Afinal cada ramo de atividade econômica, inclusive, dispende esforços para em se destacar da concorrência, e assim ganhar mais usuários e porte. Se não fosse assim, não haveria mais sentido em se manter naquela área, e mais prudente seria buscar outra atividade. Obviamente cabe ao governo cobrar adequadamente os impostos correspondentes aos resultados das empresas de cada área e, examinando o cenário nacional, destiná-los a estímulo de setores e atividades que demandem suporte ou expansão do ponto de vista político. A proposta de financiamento cruzado entre áreas de atividade, a meu ver, faz tão pouco sentido como se os fabricantes de eletrodomésticos passassem parte de sua receita aos fabricantes de materiais plásticos, sob o argumento de que “mais plástico foi necessário em função de seu uso na fabricação dos eletro-domésticos”. Afinal coisas como impostos e a própria conta de luz, existem para buscar essa equilíbrio.

Outro tema candente, o de como tratar “intermediários” na rede, teve um aporte importante com a decisão da corte norte-americana em manter o espírito da seção 230 do “decency act” de 1996. Claro que muita coisa mudou desde 1996, especialmente com a enorme expansão do chamado “ecossistema digital”, porém essas mudanças devem se refletir em legislação específica e bem definida. Não há como abarcar as mudanças que a rede e a informática trouxeram ao mundo de uma maneira generalista. Cada categoria, cada conjunto de ações de um mesmo tipo, deve ser foco de debate próprio, com suas especificidades e peculiaridade eventualmente tratadase m legislação. A nova realidade do mundo em rede deu poder de manifestação e ação a todos, o que reforça que cada um deve ser responsável pelos seus atos. E os que forem apenas canais agnósticos no processo - e pode haver esse papel - deveriam continuar não-responsáveis. Claro, desde que atuem apenas como canais, e se confinem no papel de intermediários canônicos. Conforme um amigo resumiu numa conversa, o drama é: o que costumávamos chamar de “senso comum” tornou-se raridade – é tudo menos “comum”... De uma poesia do Millôr Fernandes: ... / pois se penso demais / acabo despensando tudo que pensava antes, / e se não penso / fico pensando nisso o tempo todo. 


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Entrevista de Millor com a poesia da qual um trecho foi citado:
http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/MillorFernandes.htm

livre pensar é só pensar:
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terça-feira, 9 de maio de 2023

O arquivo da rede

Praticamente todo conhecimento humano hoje tem alguma cópia digital na Internet. Informação está disponível a todos que tem acesso à rede, em escala nunca imaginada. Certamente as consequências disso, desde as obviamente positivas às que podem moldar o comportamento humano de maneira não desejável, ainda precisam ser avaliadas, mas isso em nada diminui o imenso valor que essa disponibilidade e acessibilidade traz a todos nós. No início da popularização da rede, houve um movimento de se depositarem as informações conhecidas na Internet, seja de forma estruturada – lembro do entusiasmo que tivemos, lá por volta de 1995, com a notícia de que a biblioteca do Vaticano estaria disponível na rede – seja pelo aporte das incontáveis iniciativas individuais, especialmente após o surgimento da web. Quando ao acesso, ainda em 1996 surgiria o Altavista, um dos primeiros buscadores poderosos que facilitariam imensamente o trabalho de “garimpagem”.


A preocupação em preservar o que se estava criando tem um marco em 2002, com a popularização de ferramentas como Wayback Machine, que visavam à manutenção de um arquivo histórico dos sítios encontrados. Há uma palestra que Vint Cerf deu em 2005, no Egito, onde faz um paralelo entre a importância que a biblioteca de Alexandria representou para a cultura mundial e como essa função estava migrando para a forma digital. Um dos alertas que Vint sempre faz é que o meio digital necessita de dispositivos e recursos que, se não preservados, podem tormar o conteúdo digital muito difícil de ser preservado. Certamente quem gravou seus dados importantes em disquete magnético sabe dos riscos, não apenas da preservação do meio material, como de perder formas de acesso e leitura. Em comparação, os velhos manuscritos em pergaminho https://www.thearchaeologist.org/blog/who-destroyed-the-library-of-alexandriaduram milhares de anos graças à qualidade do material e, por usarem línguagem que se consegue decodificar, seu conteúdo permanece. A preservação de dados digitais depende de fatores que muitas vezes são descurados, dada a aparente facilidade momentânea em gerar cópias a custo muito baixo. Com certeza daqui a mil anos, pergaminhos antigos, se bem conservados, continuarão sendo legíveis. Quanto aos nossos arquivos pessoais digitais, há dúvidas importantes.

A lembrança da biblioteca de Alexandria e de sua última destruição lá pelo ano de 650, traz ao debate outro ponto bastante atual: deve-se preservar toda a informação que há num dado momento, ou se deve proceder à “destruição” do que julguemos “nocivo”. Em uma nota a um discurso sobre ciência e artes, Rousseau cita que “… dizem que o Califa Omar, quando perguntado sobre o que fazer com a biblioteca da Alexandria, teria respondido: ‘se os livros contidos na biblioteca contêm temas opostos ao Corão, eles são ruins e devem ser queimados. Se esses livros contêm apenas doutrinas alinhadas ao Corão, são supérfluos e devem ser queimados do mesmo jeito’”. Não repitamos com a Internet o que ocorreu com os documentos da biblioteca de Alexandria.

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Vint Cerf, 2005
https://www.bibalex.org/Attachments/Publications/Files/Cerf.pdf
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A biblioteca de Alexandria
https://www.thearchaeologist.org/blog/who-destroyed-the-library-of-alexandria




In 642 AD, Alexandria was captured by the Muslim army of Amr ibn al-As. Several later Arabic sources describe the library's destruction by the order of Caliph Omar.[98][99] Bar-Hebraeus, writing in the thirteenth century, quotes Omar as saying to Yaḥyā al-Naḥwī: "If those books are in agreement with the Quran, we have no need of them; and if these are opposed to the Quran, destroy them."

https://www.stmarys-ca.edu/sites/default/files/2023-03/arts.pdf

“They say that Caliph Omar, when consulted about what had to be done with the library of Alexandria, answered as follows: 'If the books of this library contain matters opposed to the Koran, they are bad and must be burned. If they contain only the doctrine of the Koran, burn them anyway, for they are superfluous.'

― Jean-Jacques Rousseau, Discourse on the Sciences and Arts and Polemics

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terça-feira, 25 de abril de 2023

Inteligência Artificial Geral

Inteligência Artificial continua provocando acaloradas discussões, tanto entre os que têm envolvimento mais profundamente com o tema, quanto entre os apenas atraidos pelo imenso ruido que há hoje sobre ele. Um artigo no Financial Times de há uma semana - “We must slow down the race to God-like AI” (deveríamos desacelerar a corrida em busca de uma “IA divina”) - traz uma descrição bastante preocupante sobre que aspectos da IA recebem hoje mais atenção. E são os gigantes da tecnologia que desenvolviem IA e impulsionam esses aspectos. O autor, ele mesmo envolvido em pesquisa de IA, alega que são sistematicamente ignorados os riscos que ela pode trazer, e segue-se na corrida de quem primeiro atingirá a IAG – Inteligência Artificial Geral – o ponto em que a IA adquire características ainda mais tipicamente humanas como criatividade e prospecção, eventualmente ultrapassando o homem também em sofisticadas atividades intelectuais. O autor, Ian Hogarth, chama a essa IAG de “God-like”, no sentido de “sobrehumana” ou “divina”, por ser capaz de, autonomamente, exibir criatividade, iniciativa e, mesmo, buscar poder para si.

Na linha de preocupações éticas, autênticas ou não, diversos figurões assinaram um documento pedindo uma trégua de 6 meses no desenvolvimento da IA até que se entendam melhor seus contornos. Há dúvidas se tais declarações tem, de fato, alguma possibilidade de amenizar a velocidade da expansão da IA, ou são apenas um posicionamento perfunctório, protetivo da própria imagem quanto à ética. Hogarth considera que os recursos aplicados em IA “para estudar seu alinhamento com valores humanos” são muito menores que os usados no desbragado desenvolvimento, sem ponderações além de se manter à frente dos competidores na busca da IAG. Há muitos casos reais de comportamento inesperado e inexplicável dos sistemas, visto que, agora eles não são mais “programados”, mas “criados”. Aliás não são poucos os exemplos na literatura de criações/criaturas que escapam do seu projeto inicial de desenvolvimento à la Frankenstein, da novela de Mary Shelley no remoto 1818.

IA certamente não é o primeiro caso de desenvolvimentos que podem trazer riscos. Lembremos, por exemplo, a tecnologia nuclear que, mesmo com tensões que periodocamente irrompem, tem-se mantido sob controle. E há a bio-engenharia, cujas consequências também podem ser imprevisíveis. Norbert Wiener, o criador do verbete “cibernética” e notável pesquisador do tema, em seu livro “Cibernética e Sociedade - o uso humano de seres humanos”, diz que “o sentido da tragédia é que o mundo não é um ninho acolhedor e protetivo, mas um vasto ambiente bastante hostil, no qual só se alcançam grandes coisas desafiando os deuses. Tal desafio inevitavelmente acarreta punição <...> Um mundo no qual a punição atinge não apenas quem peca com arrogância consciente, mas também aquele cujo único crime é ignorar os deuses e o mundo que o cerca.”

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https://en.wikipedia.org/wiki/Artificial_general_intelligence
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O artigo do FT, We must slow down the race to God-like AI
https://www.ft.com/content/03895dc4-a3b7-481e-95cc-336a524f2ac2
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O livro de Norbert Wiener, "Cibernética e Sociedade - o uso humano de seres humanos"
https://sites.ufpe.br/moinhojuridico/wp-content/uploads/sites/49/2021/10/Ciber-2c-22-out-Cibernetica-e-Sociedade-Norbert-Wiener.pdf
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Frankenstein, Mary Shelley
https://pt.wikipedia.org/wiki/Frankenstein




terça-feira, 11 de abril de 2023

Calúnia, uma sutil brisa

Se hoje a tecnologia avança em passos de sete léguas, o mesmo progresso não parece haver no componente humano. Pode ser que seja aturdimento pelo ambiente mutável, ou deslumbramento pelas possibilidades que se abrem, mas é difícil saber se o novo estado de coisas gera no espírito humano progresso, estagnação ou, até mesmo, involução.

Enquanto ouvia um baixo cantando a famosa ária da calúnia do Barbeiro de Sevilha, veio-me um lampejo: naquela ária, Dom Basílio, professor de canto de Rosina, filha do Dr. Bartolo, aconselha-o a usar da calúnia como forma de frear os avanços de um intrometido pretendente à filha. Permito-me traduzir toscamente trechos da ária em questão: “A calúnia é uma brisa gentil, que começa sutilmente e vai ganhando corpo. Com destreza entra pelas orelhas das pessoas e as faz desconfiar. Depois, com força redobrada, sai de suas bocas e vai ganhando energia até se tornar um trovão, uma tempestade. Como um tiro de canhão que ressoa pelos ares, a calúnia cria um tumulto geral. E a pobre vítima, caluniada, aviltada, espezinhada, ainda terá alguma sorte se morrer em tempo…”.

Não parece muito diferente em essência do que acontece hoje, especialmente com a chamada “cultura do cancelamento” nas redes sociais. Se Dr. Bartolo quisesse hoje denegrir o conceito do tal pretendente, teria muita facilidade para seguir os conselhos de Don Basílio: bastaria colocar algo bombástico na rede, e seus seguidores - admiradores ou não - fariam o serviço de amplificar e espalhar a notícia, num crescendo como no descrito na ária. Epa! Há aí um enorme erro de escala e de tempo: ao invés da calúnia se espalhar das bocas às orelhas, até atingir toda população local, com a rede hoje a coisa se espalha a partir dos influenciadores e seus seguidores, e em horas arregimenta milhões de prosélitos. Do ponto de vista da essência humana, pode não haver “nada de novo sob o sol” mas, com a amplificação e velocidade imprimidas pela tecnologia, o “tumulto geral” que Dom Basílio intentava chegará hoje numa ínfima fração de tempo.

E agora Dom Basílio ganhou um aliado: a IA com suas habilidades de gerar textos escorreitos e críveis, mesmo que factualmente inseguros. Ainda temos algum discernimento que permita distinguir o que pareça inverdade ou invencionice, mas conseguiremos sobrenadar, ou entregaremos os pontos? Até porque é cômodo assumir o resumo que o GPT nos entrega sobre algum tópico ou tema. Sem alarmismos nem euforia, há que se reconhecer que estamos nos metendo em “terra incógnita”. Conversando com um amigo sobre a qualidade das respostas da IA e seu efeito nos humanos, ele ponderou aguda e ironicamente: “ da leitura dos clássicos, passamos à leitura de adaptações, releituras, e até versões em quadrinhos. Agora temos a IA que escreve texto, resumindo o que seleciona. Fala-se no risco de a IA vir dar causa à extinção da humanidade. Parece que estamos trabalhando bastante para que essa perda seja mínima...”

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https://www.youtube.com/watch?v=CtFmBK6C_Mw

https://www.opera-arias.com/rossini/il-barbiere-di-siviglia/la-calunnia-e-un-venticello/


La calunnia è un venticello, / Calumny is a little breeze,            
un'auretta assai gentile /  a gentle zephyr,
che insensibile, sottile, / which insensibly, subtly,
leggermente, dolcemente, / lightly and sweetly,
incomincia a sussurrar. / commences to whisper.
Piano piano, terra terra, / Softly softly, here and there,
sottovoce, sibilando, / sottovoce, sibilant,
va scorrendo, va ronzando; / it goes gliding, it goes rambling,
nelle orecchie della gente / into the ears of the people,
s'introduce destramente, / it penetrates slyly
e le teste ed i cervelli / and the head and the brains
fa stordire e fa gonfiar.  / it stuns and it swells.
Dalla bocca fuori uscendo / From the mouth re-emerging
lo schiamazzo va crescendo, / the noise grows crescendo,
prende forza / gathers force 
a poco a poco, / little by little,
vola già di loco in loco; / runs its course from place to place,
sembra il tuono, la tempesta / seems the thunder of the tempest
che nel sen della foresta / which from the depths of the forest
va fischiando, brontolando / comes whistling, muttering,
e ti fa d'orror gelar. / freezing everyone in horror.
Alla fin trabocca e scoppia, / Finally with crack and crash,
si propaga, si raddoppia / it spreads afield, its force redoubled,
e produce un'esplosione / and produces an explosion
come un colpo di cannone, / like the outburst of a cannon,
un tremuoto, un temporale, / an earthquake, a whirlwind,
un tumulto generale, / a general uproar,
che fa l'aria rimbombar. / which makes the air resound.
E il meschino calunniato, / And the poor slandered wretch,
avvilito, calpestato, / vilified, trampled down,
sotto il pubblico flagello / sunk beneath the public lash,
per gran sorte a crepar. / by good fortune, falls to death.
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O Barbeiro de Sevilha – revistas.usp.br

https://www.revistas.usp.br/revistadatulha/article/download/148722/148170/317195

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https://es.wikipedia.org/wiki/La_calunnia

Fiódor Ivánovich Chaliápin, como Don Basílio, 1912




terça-feira, 28 de março de 2023

O Artigo 19 do Marco Civil

Em 2009, após quase dois anos de debates até atingir consenso, o CGI publicou um decálogo de princípios sobre a Internet que foi recebido efusivamente pelos presentes no IGF (Fórum de Governança internet) de 2010 em Vilna, Lituânia. O decálogo não tem poder de “lei”, mas serve como balizador de futura legislação. Tanto assim que simultaneamente iniciou-se um debate público intenso sobre uma lei que consolidasse conceitos do decálogo.

Em 2014, na abertura da NetMundial – evento internacional multissetorial sediado no Brasil, que ousou gerar documentos de orientação sobre a Internet, obtidos após longos debates com indivíduos e representantes de quase uma centena de países – a Lei do Marco Civil foi sancionada. Ela definia o “campo de jogo” da Internet, com direitos e deveres. Do decálogo original tres itens foram incorporados ao Marco Civil: a defesa da privacidade e dos dados de usuários, a preservação da neutralidade da rede, e a correta responsabilização dos atores no processo. É este ponto, gerador do artigo 19 do Marco Civil, que hoje está em questionamento;

Diz o decálogo em seu artigo 7: “O combate a ilícitos na rede deve atingir os responsáveis finais e não os meios de acesso e transporte, sempre preservando os princípios maiores de defesa da liberdade, da privacidade e do respeito aos direitos humanos." e o artigo 19: “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário." Como defensor aberto do Marco Civil, nada vejo de inadequado no artigo 19. Sim, pode haver lei complementar adaptada aos tempos, mas ele permanece sólido.

Há plataformas que ignoram o que nelas trafega, e há as que conhecem do conteúdo. As primeiras não há como nem por quê responsabilizar. Com as outras ocorre que, muitas vezes, não se limitam a enviar o conteúdo do emitente aos destinatários pré-definidos, mas o repassam a outros, a seu talante. E aí é que a porca torce o rabo. Afinal, se alguém decide me mandar algo, é dele a responsabilidade pelo conteúdo. Uma plataforma que, por sua livre decisão, baseada ou não em algoritmos, escolhe repassar conteúdo a outrem, deixa de ser um “intermediário” neste caso específico. Passaria a constar da lista de “terceiros”, conforme o artigo 19: afinal, na melhor das hipóteses, estamos diante de um caso de “spam”...

Para seguir na boa trilha que o Brasil traça na Internet, seja em governança, seja em legislação, é mister construir sobre base sólida – e a temos! Solapar o que existe e foi aclamado internacionalmente, parece altamente contraindicado. Discutamos aperfeiçoamentos e acréscimos ao bom edifício, mas evitemos demolí-lo...

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/o-artigo-19-do-marco-civil-nao-pode-ser-demolido-na-busca-pela-regulacao-das-redes-sociais

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A guisa de curiosidade, o que o ChatGPT-4 acha do Artigo 19 do MCI a partir de uma pergunta que o Percival (CGI) fez:

Pergunta (Percival): Finja que é um advogado e faça uma sustentação oral defendendo a constitucionalidade do art 19 do marco civil da internet

Resposta (ChatGPT-4) Meritíssimos Ministros, Excelências, senhores e senhoras presentes,

Ilustre presidente, venho perante esta Egrégia Corte defender a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Este dispositivo legal equilibra os interesses entre a liberdade de expressão, o acesso à informação e a proteção dos direitos individuais, como a honra, a imagem e a privacidade dos cidadãos brasileiros.

O referido artigo estabelece que provedores de aplicações de internet somente poderão ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomarem providências para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.

Permitam-me destacar que o artigo 19 coaduna-se com os princípios fundamentais da nossa Constituição Federal. A liberdade de expressão é assegurada pelo artigo 5º, inciso IX, e pelo artigo 220 da Constituição. Contudo, a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Os incisos V e X do artigo 5º também protegem o direito à indenização por dano moral ou material decorrente de violação à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas.

Nesse sentido, o artigo 19 do Marco Civil da Internet harmoniza os princípios constitucionais, estabelecendo um mecanismo equilibrado de responsabilização dos provedores de aplicações de internet. A necessidade de uma ordem judicial específica para a remoção do conteúdo infrator confere maior segurança jurídica e reforça a preservação da liberdade de expressão, ao mesmo tempo em que protege os direitos individuais das vítimas.

Vale ressaltar que a inexistência dessa previsão legal poderia levar os provedores de aplicações de internet a adotar posturas excessivamente cautelosas, removendo conteúdos em resposta a simples alegações de ofensa, sem a devida análise judicial. Tal cenário poderia resultar em uma forma de censura privada, com graves impactos sobre a liberdade de expressão e o acesso à informação.

Além disso, o artigo 19 não impede a responsabilização dos autores das ofensas. Esses continuam sujeitos às sanções civis e penais previstas na legislação, independentemente de qualquer ação por parte dos provedores de aplicações de internet.

Portanto, Excelências, o artigo 19 do Marco Civil da Internet é compatível com os princípios e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal. Ele proporciona um equilíbrio justo entre a proteção dos direitos individuais e a preservação da liberdade de expressão, garantindo um ambiente digital sadio e respeitoso para os cidadãos brasileiros.

Ratifico, assim, a defesa da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet e solicito que esta Corte reconheça e confirme sua conformidade com os princípios consagrados na Constituição Federal.

Muito obrigado, Excelências.
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