terça-feira, 12 de maio de 2020

A hora da xepa.

Sou permeável a conselhos desde que, lógico, sigam na linha que acho correta. Assim, enquanto aguardo que as potestades nos livrem dos miasmas da peste que nos assola, mantenho-me em asséptico recolhimento. Ora, segundo os mistagogos, estando enclausurado é de bom alvitre prover alimento também à alma: revi “O Desprezo”, belo filme de 1963. Além de nos fazer pensar sobre a incomunicabilidade e outros dilemas filosóficos, o filme, esteticamente, atinge niveis sublimes. Para citar apenas tres deles, há a fulgurante Brigitte Bardot, o cenário paradisíaco de Capri e… uma Alfa Romeu vermelha de tirar o fôlego!

Mas o que fez associar o filme ao texto foi uma fala curta da personagem “Fritz Lang”, no filme um famoso diretor de cinema, interpretado por… Fritz Lang. Bem, lá pelas tantas, Fritz Lang, algo entediado, cita o poeminha curto e agudo de Bertold Brecht, “Hollywood”: “Cada manhã, para ganhar meu pão / vou ao mercado onde se compram mentiras. / Cheio de esperança / incluo-me entre os vendedores”. Talvez haja um componente autobiográfico nessas quatro linhas, dado que Brecht trabalhou em Holywood durante a segunda grande guerra, mas é interessante a visão amarga e sarcástica que tem do tal “mercado onde se compram mentiras”.

Que houve daqueles tempos para cá? Parece-me que nosso desejo de comprar mentiras adequadas não arrefeceu. Se ele era a mola propulsora de poucos e elitizados mercados como Holywood, hoje encontra resposta simples, barata e ampla na Internet… Há ali, a custo muito baixo, mentiras disponíveis para todos. E os vendedores não precisam mais pertencer a grupos específicos: hoje qualquer um de nós pode se perfilar entre os vendedorhttps://lareviewofbooks.org/article/a-brecht-for-our-time-on-the-collected-poems-of-bertolt-brecht/es, ao mesmo tempo que entre os compradores.

Essa banalização do mercado de mentiras leva-me a outra analogia, igualmente datada e certamente falha: a da “feira livre”. Sob alguns aspectos, parece estamos numa feira livre dos velhos tempos. Daquelas que tinham seus rituais, expressões, sons e aromas característicos. Desde do indefectível “pastel de feira”, em geral numa das suas extremidades e provido por orientais, até o odor pungente das barracas de peixe na outra extremidade, passando pela infinidade de vendas apregoando de tudo: da baciada de laranja bahia, “doce como mel”, ao maço da couve mais tenra e apetitosa. Se a feira lembra a nossa Internet, na rede podemos ainda mais! Podemos nos colocar como fregueses das barracas, e também… como repassadores do que recebemos. Podemos agir como propagandistas, intencionais ou não, das qualidades do açúcar mascavo, ou do feijão carioquinha da tenda do Pedrão. E, além disso, a feira tem uma forma própria de padrões de medida, que sempre admite um “chorinho”: uma bacia de laranja, mas podendo antes experimentar grátis a doçura do fruto, um maço generoso de espinafre, que sempre pode ter algum reforço para agradar o freguês.

O risco que se corre é, com a crescente oferta de tudo (e, portanto, também de mentiras), acabar caindo no conto dos pregoeiros de ocasião. Eles muitas vezes nem dinheiro querem – bastam alguns dados nossos e eis que receberemos um “brinde” ou um serviço talvez suspeito. O fim-de-feira, a conhecida xepa, é a hora com maior risco, ao arrematar os restos sempre com a impressão de que estamos a fazer vantajosas permutas... Mas preciso parar aqui, para não cair no crivo do Millôr: “as pessoas que falam muito, mentem sempre, porque acabam esgotando seu estoque de verdades”.

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"Hollywood" de Bertold Brecht 
em alemão:

Jeden Morgen, mein Brot zu verdienen
Gehe ich auf den Markt, wo Lügen gekauft werden.
Hoffnungsvoll
Reihe ich mich ein zwischen die Verkäuf
er.


em inglês:
Every morning, to earn my bread
I go to the market where lies are traded
In hope
I take my place amongst the sellers.


https://lareviewofbooks.org/article/a-brecht-for-our-time-on-the-collected-poems-of-bertolt-brecht/

e quando Fritz Lang recita o poema, no filme:

https://www.youtube.com/watch?v=ITHTbewUF-c&feature=youtu.be&t=4361
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Textos sobre "O Desprezo":

https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/download/18768/15710/

https://cinemaedebate.com/2010/09/23/o-desprezo-1963/
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A foto da escadaria que leva ao teto da casa em Capri:


em https://exame.abril.com.br/marketing/festival-de-cannes-divulga-poster-oficial-de-2016/



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