terça-feira, 13 de outubro de 2020

A lei de Postel

A forma da governança da Internet é sempre tema de debates e confronto de opiniões, especialmente em tempos assim difíceis e complicados. Afinal, de que meios a sociedade deveria lançar mão para evitar os danos e riscos a que estamos expostos, enquanto preserva a civilidade e a volta da boa discussão de ideias? Tivemos há quatro dias um interessante painel sobre o jornalismo neste cenário de muita tecnológia, concentração de poder e crescente polarização da sociedade. Como escapar do caos e da barbárie que parecem nos espreitar?

Nesse debate é importante que se preservem os conceitos que fizeram da Internet o sucesso que é. Estes princípios eram presentes na definição de sua arquitetura, como inter-rede aberta, livre e sem controle central, e cujo único requisito para a adesão é que as redes ingressantes implementem os protocolos técnicos definidos e adotem identificadores coordenados, para a funcionalidade do todo. Esse conjunto de protocolos é o TCP/IP, definido por Vint Cerf e Bob Kahn e oficialmente implantado em toda a Arpanet em 1 de janeiro de 1983.

É inquestionável a solidez técnica da solução adotada em 1983, haja vista sua resiliência e a capacidade de suportar um incremento de milhões de vezes na carga de trabalho e capacidade de comunicação. Sobre essa estrutura aplicações são livremente criadas e oferecidas. Algumas, como a Web, ganharam tanta expressão que por vezes são confundidas com a Internet em si. Outras provêm a seus usuários facilidades e atrativos que os mantêm em sua órbita, fazendo-os esquecer da riqueza que também existe fora dos muros daqueles jardins.

Assim, há que se distinguir o que é a Internet em essẽncia, cujos princípios e conceitos devem ser preservados e defendidos, das construções sobre ela, que prometem frecursos e conforto, mas que também são fonte de abusos, de riscos aos usuários, além de representarem uma grande concentração de poder. Na ânisia de aplacar o que nos aflige, cuidemos em não propor “emenda que saia pior que o soneto”.

Voltando ao que um amigo chamou de a “belle epoque” da Internet, Jon Postel, um pioneiro da rede, enunciou em 1980 um princípio de robustez para o TCP/IP que acabou conhecido com “a lei de Postel”: para a rede se manter sólida e funcional, devemos ser conservadores no que fazemos, e liberais no que aceitamos dos demais”. É a própria definição de comportamento tolerante e sensato. Extrapolemos a “lei de Postel” para o comportamento dos usuários da rede e resulta que, se é certo que receberemos coisas indesejadas, falsas, ofensivas, até perigosas, de nosso lado, porém, deveríamos sempre agir de forma ética e contida.

Os fados, os ventos, as redes sociais, os ingressantes encantados com o poder de voz que a rede lhes trouxe, fizeram com que a sábia mensagem de Postel não apenas fosse praticamente esquecida, mas que seu oposto ganhasse espaço e prevalência. A moda hoje é falar desbragadamente sobre tudo e para todos, esperando que nossa voz ecoe e tenha o impacto que gostaríamos, ao mesmo tempo em que nos irritamos com o que recebemos, especialmente se confronta nossa posição. Somos zelosos em não aceitar o chega até nós, e liberais no que enviamos aos demais. Prezamos nossa liberdade para falar o que for, para qualquer um, mas nos sentimos ofendidos e buscamos impedir que nos chegue o que não agrada. É esse mecanismo que inibe o debate de idéias e isola os indivíduos atrás de muros e ilhas sociais radicalizadas. É a “anti-lei de Postel”, que trabalha pela barbárie. Recuperemos o sensato e construtivo espírito da lei original.
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A lei de Postel https://twitter.com/Axelisys/status/1278957787280785408?s=20

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Jon Postel
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