terça-feira, 2 de março de 2021

Riscos à Internet

Há uma queda-de-braço em andamento entre gigantes da tecnologia que operam as plataformas dominantes na Internet, e governos de alguns países. No caso da Austrália, por exemplo, uma recente lei obriga as plataformas e remunerarem empresas de informação quando do compartilhamento de linques. As consequências para a Internet podem ser bem ruins. É mais uma polêmica permeada por definições escorregadias e jogo não claro das partes, que não hesitam em travestir seus próprios objetivos em algo que pareça vir ao encontro do interesse público. Desta forma, tanto a linha de corte do que seria eticamente adequado, como o real perde-ganha dos envolvidos, tornam-se muito difusos.

A caracterização do papel das plataformas na intercomunicação há tempos deixou de ser simples e clara. A função inicial que elas assumiram foi de “vasos comunicantes” entre usuários interessados em trocar opiniões, e base para a criação de comunidades sobre tópicos ou interesses. No papel de um intermediário simples não há muita polêmica. O telefone, por exemplo, cumpre essa função, limitada normalmente a dois interlocutores simjultãneos: se alguém me ofende ao telefone, ou me faz alguma oferta de produto ilegal, não imaginaria tornar a companhia telefônica corré do eventual delito. Vale também para o correio. Para dar um exemplo de antanho, havia “torneios de xadrez por correspondência” em que os jogos eram travados por troca de cartas. É natural concluir que esses facilitadores da comunicação e da associação não tinham, a priori, nenhuma responsabilidade pelo conteúdo transportado. Vale aqui o “não mate o mensageiro”… Já na ação atual as plataformas ultrapassam em vários aspectos sua função de interemdiário. No xadrez por correspondência o correio não tiraria conclusões sobre a qualidade ou os interesses dos jogadores. Nas novas plataformas, não só o perfil do usuário é levantado, como é capz até que se metessem a sugerir jogadas...

O tema da Austrália é movido especialmente pelo fato de que há muito dinheiro de propaganda fluindo para as plataformas, enquanto secam recursos para atividades jornalísticas. Surgiu assim a idéia da lei que obriga repasse de recursos, especificamente, à indústria da informação. Os linques de notícias que circulam pelas plataformas poderiam gerar um pagamento a ser ajustado com o gerador da notícia a que o linque se refere. Há diversos textos na rede mostrando como isso ataca, não apenas o conceito de hipertexto

- onde o linque tem a única função de ser um “apontador “, e não carrega conteúdo em si - mas a própria abertura na Internet. No limite, se alguém mandar a um amigo uma referência de notícia ou conteúdo, o remetente poderia estar sujeito a pagar algo. Tim Berners-Lee, o criador da Web, já havia definido que a mera existência de um linque de hipertexto não carrega em si, nem conteúdo, nem valor autoral.

O jogo de negaças mútuas se expande. Se, por um lado, as empresas de tecnologia tentam usar o trunfo de “intermediário neutro”, por outro, ao alegar que conseguem “moderar conteúdos” para o bem público geral, assumem um papel eventualmente editorial. Se parece clara a necessidade de um nivelamento do campo de jogo e das forças de mercado, não parece razoável um governo interferir pontualmente nas relações entre dois tipos de negócio, e com o risco subjacente de fazer mal à Internet, a possível vítima deste confronto. A clara necessidade de equacionar e conter o crecente poderio dos gigantes da tecnologia, não pode redundar em danos maiores ao ecosistema de abertura e liberdade que a Internet provê. Num aforismo em “Para além do Bem e do Mal”, Nietzsche diz: “ao lutar contra os monstros, acautela-te para que não te transformes também em monstro”.

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sobre o caso Austrália:

http://www.komaitis.org/the-conversation/in-the-case-of-australia-vs-facebook-the-internet-is-the-casualty

https://m.dw.com/en/australia-passes-media-law-as-facebook-defends-news-blackout/a-56682488

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o texto de "Para além do Bem e do Mal"

https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/4/o/Al__m_do__Bem_e_do_Mal.pdf

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monstros mitológicos

https://jornal.usp.br/tag/monstros/?amp



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