terça-feira, 9 de novembro de 2021

Novos tempos

Analisar os impactos da Internet no que fazemos em nosso dia-a-dia já é um objetivo bastante ousado e quase inatingível, mas avaliar como ela tem afetado nosso comportamento social é ainda mais desafiador. Ressalvas importantes: há que se distinguir entre a Internet em si: uma infraestrutura aberta, sem limites físicos, que chama todos a uma conexão e provê um acesso absolutamente ilimitado a informações de todo o tipo, das muito úteis, às eventualmente nocivas e propositadamente enganosas, passando um vasto elenco de futilidades; das construções que crescem sobre ela. Essas construções que também respondem pelo nome de “plataformas”, valem-se do princípio de “livre inovação” - que deve ser preservado! – e podem evoluir para empresas com grande concentração de poder econômico e social, escorado especialmente na forte fidelização de seus usuários. Essa estratégia de intenso engajamento é operacionalizada pela aquisição de vasto conhecimento dos dados e características dos usuários. É a chamada “economia da atenção”, quando manter o usuário constantemente conectado, e sempre usando os serviços da plataforma, traz mais retorno econômico a ela.

A forma de atenuar esse controle poderia residir numa conscientização nossa, associada a leis de proteção de nossos dados, como a que temos no Brasil. Mas é fato que o “canto da sereia” do conforto, facilidade e prazer emocional que os usuários recebem, reduz qualquer postura mais crítica em relação ao “pacto” feito. A excitação de poder participar, com voz, em discussões de qualquer tema é tão contagiante que pensamento crítico ficará “pra depois”… Assim, das alternativas que restam para se atenuar essa dominância, ouve-se cada vez mais frequentemente as que provem de regimes fortes. Aliás, dos mesmos regimes que muitas vezes praticam controle estreito e uma coleta desmedida de dados de seus cidadãos, mas que não impede de coibir o mesmo quando se tratar de atores privados. Como achar soluções de equilíbrio, que possam ser implementadas com algum sucesso em prazos razoáveis? O risco de ir “da frigideira ao fogo” aqui é grande.

O caráter livre e aberto da rede pode ter afetado o comportamento em comunidade: a definição de “tolerância” tem sendo revisitada. Como exemplo refiz, via buscadores, vagas lembranças reencontrando algumas das músicas irreverentes que despreocupadamente se cantavam na universidade... Achá-las é ainda possível, mas seria admissível cantá-las?. O comportamento petulante, amistoso/jocoso dos anos 70 hoje poderia ser rotulado de “inaceitável”, e como algo a ser segregado. Folheie-se A Serpente Encantadora, livro do Telmo Martino: é uma “janela no tempo” com crônicas da época do Jornal da Tarde. Telmo, além de mente afiada e de um texto culto e ágil, era dotado de uma língua ferina, venenosíssima, e tratava todos e tudo, poupando pouquíssimos. Seria Telmo ainda possível hoje, em plena “cultura do cancelamento”, ou seguimos empobrecendo a olhos vistos?

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Sobre China e as Big Techs:
https://www.theguardian.com/technology/2021/nov/03/techscape-china-jack-ma-regulation?mc_cid=c7d999a2d3&mc_eid=c3ed2a6583
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Sobre "A Serpente Encantadora", Telmo Martino





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