terça-feira, 17 de março de 2020

A Peste

Sob muitos pontos de vista estamos vivendo um período atípico da humanidade. Até a metade do século passado nossos ascendentes tiveram que se haver com uma guerra que começou em 1914, com a gripe espanhola em 1919, um interlúdio tenso entre 1920 e 1938, coalhado de crises econômicas e políticas, e a volta da guerra em 1939. Nós fomos bastante poupados. Há sempre conflitos aqui e ali, com o drama e as injustiças que carregam, mas em nada comparáveis com a destruição e a mortandade da primeira metade do século 20.
E eis que de repente surge uma verdadeira ameaça global. Do tipo que considerávamos apenas tema para literatura de época e que pede medidas draconianas como fronteiras fechadas e recolhimento compulsório. Há, com o título acima, um ótimo livro de Albert Camus, que descreve o improvável ressurgimento da peste bubônica, cerca de 1940, em Orã, Argélia. Aos primeiros indícios - morte repentina de milhares de ratos nas ruas de Orã - há a tendência natural de negação, mas logo fica claro que, mortos os ratos, suas pulgas infestarão os humanos e a peste de alastrará, inclusive pelo contacto direto com os infectados. Fecham-se fronteiras e introduz-se quarentena compulsória aos suspeitos, além das medidas higiênicas de praxe. O texto, delicioso e com personagens complexas, incluiu tudo o que parece estamos para viver por aqui: corrida aos mercados, prateleiras esvaziando-se, preços subindo, a necessidade de ocupar o tempo de reclusão, as tensões sociais que o convívio forçado provoca, mas também exemplos de dedicação e abnegação.
Há muitos paralelos mas, como os tempos são outros, também diferenças importantes. A disseminação galopante de informações de hoje não se compara com a forma informar novidades em Orã. Lá também circulavam boatos e inverdades, mas em proporção incomparável ao que vemos. Aliás, esse é um dos motivos da insegurança que nos assola: escolhemos "a la carte" o que queremos ouvir sobre essa pandemia. Desde algo animador, que minimiza o que virá e acalma os espíritos, a cenários aterradores que evocarão os 50 milhões de mortos da "gripe espanhola" de 1918. Ah, disseminam-se também elaboradas teorias de conspiração e de guerra biológica.

Outra diferença é o arsenal tecnológico de que dispomos para trabalhar a partir de nossas casas, remotamente. Temos equipamentos e bases de dados conectadas, temos boa capacidade de banda para comunicação, temos a estrutura da Internet a nos fornecer suporte. A barreira física que assim se cria é eficiente para inibir o vírus biológico. Mas não nos esqueçamos das modalidades artificiais de "vírus", as que são criação da informática. E para esses entes do mal, quanto mais dados trafegarem nas redes, quanto mais transações críticas forem executadas, mas instigante e promissor será o cenário. Com acesso remoto, a transmissão do virus biológico será controlada mas... haverá um recrudescimento de ameaças informáticas pelo aumento óbvio de apetitosos alvos. Transferir, sem a devidas medidas profiláticas, uma aplicação que era segura em rede local, para uma rede ampla como a Internet, pode criar riscos importantes.

Em Orã, após seis meses, a peste foi debelada.  Final feliz. Camus deixa um aviso aos leitores: "...muitos podem não saber, mas o bacilo da peste nunca morre... Espera pacientemente até o dia em que, para infortúnio (e aprendizado) dos homens, a peste acordará seus ratos e os enviará para morrer numa cidade feliz".

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algumas citações de Camus:
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"...ce qu'on appelle une raison de vivre est en même temps une excellente raison de mourir"
(o que se considera uma "razão para viver" pode ser, ao mesmo tempo, uma ótima "razão para morrer" -  de "O Mito de Sísifo")
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"Écoutant, en effet, les cris d'allégresse qui montaient de la ville, Rieux se souvenait que cette allégresse était toujours menacée. Car il savait ce que cette foule en joie ignorait, et qu'on peut lire dans les livres, que le bacille de la peste ne meurt ni ne disparaît jamais, qu'il peut rester pendant des dizaines d'années endormi dans les meubles et le linge, qu'il attend patiemment dans les chambres, les caves, les malles, les mouchoirs et les paperasses, et que, peut-être, le jour viendrait où, pour le malheur et l'enseignement des hommes, la peste réveillerait ses rats et les enverrait mourir dans une cité heureuse."

“Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que essa alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”
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https://www.edition-originale.com/en/literature/first-and-precious-books/camus-la-peste-1947-44765

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