terça-feira, 29 de agosto de 2023

Falsos antagonismos

Uma das recentes conquistas da legislação brasileira - e seguindo no bom rumo indicado pelo Marco Civil - foi a aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados em 2018. Com ela estabeleceram-se boas práticas e, especialmente, barreiras a abusos muito comuns, especialmente quando lidamos com o mundo digital.

Assim, privacidade é valorizada mas é justamente no “admirável mundo novo” digital onde passamos a ouvir, sistemáticamente, que nossos próprios atos, palavras e, até, pensamentos deveriam ser “totalmente transparentes”, para o “bem de todos”. Afinal, “quem nada tem a esconder não tem que se preocupar com o amplo acesso a suas informações”, afirmou uma importante personagem global. E é exatamente aí que mora o perigo…Há, sim, um íntimo pessoal e coisas como a intuição, que deveriam ser preservados de todos. Em Anna Karênina, Tolstoi faz Levin definir que: “deve haver sempre um muro isolando o ‘santo dos santos’ de minha alma de todos os indivíduos, e até de minha própria mulher <...> minha razão continua sem entender porque eu rezo, e mesmo assim continuarei rezando”…

Há um livrinho de um filósofo teuto-coreano, Byung-Chul Han, “Sociedade da Transparência”, que se propõe a debater o tema e vale uma vista d’olhos. A cultura e a civilização dá a cada indivíduo sua identidade própria, e isso é tão profundo que nem nós mesmos temos visão clara sobre o que somos. A civilização nos fez abandonar a busca da antiga proteção de rebanho, e fez dar voo e valor à individualidade. A complexidade humana cresceu proporcionalmente. Aquilo de id, ego e superego, lá de Freud e da psicanálise, dá uma boa ilustração de como, até para nossa sanidade, o uso de subterfúgios e de máscaras é importante e indefectível. Não é por menos que somos “pessoas”, palavra cujo étimo latino vem de “máscara de teatro”; somos personagens. Já Millôr, em uma de suas impagáveis tiradas, cutucava em contraponto: “Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem”.

Uma dúvida que pode surgir é se haveria um potencial conflito entre a necessidade de maior transparência, e a proteção à privacidade prevista na LGPD. Afinal desde 2011 há uma lei que dispõe sobre o acesso aberto e irrestrito a dados de órgãos públicos. Ficará clara a divisão de águas se atentarmos para os objetivos diferentes: temos o direito de saber o que se passa nos desvãos dos órgãos dos que nos governam – é a essência da Lei de Acesso a Dados - mas os dados dos indivíduos deveriam ser protegidos dos que buscam conhecê-los e controlá-los. O que nos difere é que temos profundezas individuais que devem ser protegidas. O ivrinho citado traz como epígrafe: “daquilo de que os outros não sabem sobre mim, disso vivo”. Danilo Doneda, especialista que perdemos há um ano e batalhador incansável por essa LGPD, nos dá a receita para dirimir dúvidas e separar o dever de transparência do direito à privacidadae: “A transparência deve ser diretamente proporcional ao poder. A privacidade deve ser inversamente proporcional ao poder.”

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em https://www.racket.news/p/tracking-orwellian-change-the-aristocratic
"Tracking Orwellian Change: The Aristocratic Takeover of 'Transparency'"

há um vídeo curto, mas revelador...
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em https://www.newyorker.com/books/joshua-rothman/virginia-woolfs-idea-of-privacy

Levin, at the end of “Anna Karenina,” calls it his “holy of holies,” and says that, no matter how close he grows to the people around him, there will always be “the same wall between my soul’s holy of holies and other people, even my wife.”

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https://doneda.net/frases-de-danilo-doneda/

“O Marco Civil da Internet tem uma vantagem muito relevante que é ter sido tratado sob a égide dos princípios e dos direitos mais do que estabelecer regras muito minuciosas sobre temas que hoje seriam obsoletos.”

“A transparência deve ser diretamente proporcional ao poder. A privacidade deve ser inversamente proporcional ao poder.”

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Livro de Byung-Chul Han:


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