terça-feira, 20 de maio de 2025

Um lobo!

Não se sabe muito sobre Esopo, que teria vivido no século VI a.C: segundo a tradição, foi escravo e conquistou sua liberdade graças à sua invulgar inteligência e sabedoria. Suas fábulas atravessaram os séculos e continuam servindo como apóstrofe e advertência para muitas situações contemporâneas. Uma delas, a do menino que gritava “lobo!”, me veio à mente enquanto testava o que se consegue hoje com as diversas ferramentas de IA disponíveis.

Na citada fábula, um pastorzinho querendo se divertir com a reação dos aldeões, grita “lobo!” enquanto apascenta suas ovelhas. Claro que todos saem em socorro do pastor, mas revela-se que eram “fake news” – não havia lobo. Satisfeito com o resultado, passados alguns dias o pastorzinho renova a pegadinha: “lobo!”. De novo o pessoal acorre e, de novo, não há lobo nenhum. Mais algum tempo se passa e, de repente, um lobo real e poderoso aparece. O pastor, desesperado, clama “lobo!” mas, desta vez, os aldeões, vacinados pelas mentiras anteriores, não comparecem. O resultado é que o lobo devora o rebanho.

A analogia que me veio à mente é com as ondas de inteligência artificial, seus ciclos de promessas, frustrações e renascimentos. Por repetição ou exagero de propaganda, IA acabava por ser desacreditada até que, enfim, o “lobo” apareceu.

A primeira onda da IA, nascida no entusiasmo das décadas de 1950 e 60 quando a computação já amadurecia, prometeu máquinas pensantes, lógicas, capazes de simular o raciocínio humano. Foi a época do Eliza (1966) e outros sistemas interativos, mas que frustraram as expectativas, mostraram-se simplórios e distantes da promessa. O resultado foi o primeiro “inverno da IA”, com o fim de investimentos na área…

Após o primeiro “inverno”, veio a segunda onda, 1980 e 90, com uso intenso de estatística, e a proposta de redes neuronais. Foi marcada pelo aumento na capacidade de processamento, com avanços notáveis em reconhecimento de padrões e em tarefas específicas, mas IA em si ainda parecia mais propaganda do que uma transformação estrutural em curso. Em 1997, o “Deep Blue” da IBM, usando computação de “força bruta” e sem aprendizado, derrotou Kasparov: a máquina ameaçava o homem, mas o público desacreditava de sistemas que aprendessem. Ainda não era o “lobo”. Seguiu-se outro “inverno” de IA.

A terceira onda vem em 2010 com aprendizado profundo de máquina, sistemas generativos criando textos e imagens sintéticas com muita verossimilhança, a “Era da Experiência”. Além de sistemas que digerem o que há no mundo e agem de forma autônoma, agora eles otimizam estratégias e propõem suas próprias perguntas. Em breve IA estará implantando soluções que não passaram pelo crivo humano. O “lobo” agora é real e está no meio de nós, silencioso e efetivo. O risco não está em reagir demais — está em não reagir mais.

Outro sinal dos tempos são os bonecos que simulam crianças: os tais “reborn”. Há os que se apegam a eles intensamente, a ponto de superar seu vínculo com humanos. Será o “lobo da IA” um “reborn” que vai substituir nossas conversas com amigos e nossos relacionamentos emocionais? Alerta!

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A fábula:
https://www.fabulasdeesopo.com.br/p/o-menino-do-pastor-e-o-lobo.html



os invernos da IA:
https://www.institutodeengenharia.org.br/site/2018/10/29/a-historia-da-inteligencia-artificial/

algumas previsões preocupantes:
https://ai-2027.com/





terça-feira, 6 de maio de 2025

Boutades

Há décadas provocava-se: “os computadores vieram prá resolver os problemas que antes não tínhamos…”. E certamente há circunstâncias em que essa ironia se aplicaria. Afinal, boa parte do “esforço computacional” que fazemos destina-se a nos proteger dos riscos e ameaças que outros “esforços computacionais”, nefastos, segundo nossa avaliação ética, fazem ao nosso espaço. Se extrapolarmos essa análise ao que a IA promete trazer, a frase deixa de ser uma boutade para se tornar um truísmo.

Um exemplo atual desse paradoxo é a corrida, constante e acelerada, entre a capacidade de gerar imagens e vídeos sintéticos hiper-realistas e as ferramentas que buscam detectá-los. Ambos os lados da disputa são alimentados por IA: tanto os sistemas que criam a "meta-realidade" artificial, quanto aqueles que almejam distinguir o real do falso. Essa dinâmica lembra a corrida interminável entre vírus de computador e antivírus — um jogo, talvez simulado, de “gato e rato”, cujo desfecho permanece incerto.

Noticiou-se recentemente que as IAs já conseguem incluir respiração e expressões emocionais sutis nas personagens que figuram em vídeos sintéticos. Um dos métodos antes utilizados para identificar fraudes visuais baseava-se justamente na ausência de minúcias como padrões de batimento cardíaco, microvariações de coloração da pele associadas à emoção, ou flutuações quase imperceptíveis da respiração. Pois bem, os geradores de vídeo já imitam esses sinais e o “crivo” de detecção precisa ser revisitado. Novas ferramentas, novos indicadores, até que eles sejam novamente ultrapassados. Se essa luta é ou não inglória, o tempo dirá — os que sobreviverem verão.

Em solução de problemas, o lado positivo é que IA permite uma investigação e correlação de volumes gigantescos de dados em tempos irrisórios - um feito impossível a humanos... Uma solução eficiente para uma vasta gama de problemas que exigiriam anos de decantação. Nesse espírito, artigos recentes sugerem que a IA já superou o “teste de imitação” de Turing: em inúmeros casos, a resposta fornecida por um LLM é mais coerente e bem articulada do que a esperada de um ser humano médio. IA imita o comportamento humano com a vantagem computacional ao digerir dados em larga escala. Ainda não estamos, claro, diante da IAG, Inteligência Artificial Geral, mas o crivo de Turing parece hoje superável.

Ressurge a provocação inicial: se a IA já assimilou a produção intelectual da humanidade, o próximo passo seria a criação autônoma de problemas e soluções? Em outras palavras: após resolver os problemas que achávamos ter, a IA passaria a propor problemas próprios, e a resolvê-los sem nossa participação? Pior: pode-se imaginar que a avaliação da qualidade dessas soluções também dispense a intervenção humana: o homem deixaria de ser a “medida de todas as coisas”. Se, como diz Nietzsche, “não há fatos, apenas interpretações”, essas interpretações já não nos pertenceriam mais. “Problemas que antes não tínhamos”? Sim, e talvez agora nem sejamos mais nós a nomeá-los.

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/a-ia-pode-ter-tirado-dos-humanos-a-capacidade-de-determinar-o-que-sao-problemas-ou-nao/

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Boutade:
https://www.dicionarioinformal.com.br/boutade/


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Sobre "batimentos cardíacos" em vídeos sintéricos:
https://noticias.r7.com/internacional/deepfakes-podem-apresentar-batimentos-cardiacos-para-dificultar-a-sua-identificacao-03052025/

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Sobre IA com "iniciativas":
https://storage.googleapis.com/deepmind-media/Era-of-Experience%20/The%20Era%20of%20Experience%20Paper.pdf

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Sobre superação do Teste de Turing:
https://spj.science.org/doi/10.34133/icomputing.0102

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