terça-feira, 29 de julho de 2025

Palavras, palavras.

Napoleão Mendes de Almeida abre seu Dicionário de Questões Vernáculas com “se o estilo reflete o homem, o idioma reflete o povo”. Nós, lusófonos, temos um belo e rico patrimônio a proteger. Não tenho a pretensão nem a competência de examinar o tema com profundidade, mas a verdade é que a tendência que vejo me provoca incômodo. Estou indo além de minhas chinelas de engenheiro, mas tive a sorte de, no colégio, ouvir de bons mestres da língua.

O idioma é algo dinâmico. Palavras e expressões antigas caem em desuso, enquanto novas vão sendo incorporadas, muitas vezes mimetizando outras línguas. A priori nada há de errado nisso. Mas, talvez, a tentação de mostrar erudição e atualidade leve muitos a usarem estrangeirismos, mesmo quando há uma perfeita palavra em português para aquilo. Neologismos são e devem ser incorporados quando um conceito novo se apresenta. Mas seria este o caso do uso de “light” em lugar de ”leve”? Teria “level” mais sentido que “nível”, “off” mais conteúdo que “desconto”, “sale” que “liquidação”?

Para a incorporação de vocábulos parece-me que o aportuguesamento seria o melhor caminho. Afinal, de “football” fizemos futebol, de “back”, o beque, de “ballet” o balé… Millôr já escrevia “saite”, no lugar de site ou sítio. Se crianças aprenderam o som de “i” em português, estranharão se um “i” for lido como “ai”. Oswald de Andrade, em seu Manifesto Antropófago, ia nessa linha: há que se absorver os conceitos de outras culturas, digeri-los e incorporá-los à nossa. Ao modo dos indígenas que, ao devorar um inimigo valoroso, criam que seus predicados se adicionariam aos deles.

Um outro ponto que causa assombro é a deformação semântica que radicais usuais na lingua estão sofrendo… Desde sempre, do grego, fobos/fobia é medo. Ao que modismos importados propagam, fobia passa a ser “ódio”, para o qual já tinhamos “misia”. Não apenas se deturpa a semântica do radical, como se montam palavras gramaticamente teratológicas, como “gordofobia”. Outra batalha perdida é tentar recuperar o sentido de “ciber”, raíz grega que, via latim, nos deu “governo”. Quando Norbert Wiener escreveu “Cybernetics” em 1948, cunhando o termo, decreveu-o como “sobre o controle e comunicação em animais e máquinas”. Ou seja, “cibernética” seria algo como “governética”, bem distante de eletrônica ou redes.

Há também uma tendência - talvez para mostrar sofisticação - de esquecer ou simplesmente ignorar o nome do toponímico em português. Ora, aqui dizemos Londres, Alemanha, Florença, mesmo sabendo que os locais falam London, Deutschland e Firenze. Então por que trocar o tradicional Pequim por Beijing? Ou Ceilão por Sri Lanka?

Uma última linha de barbarismos é importar semântica estrangeira para uma palavra de raíz latina… Quando usamos “realizar” como “dar-se conta de” estamos dando um sentido inglês da palavra, inexistente em português.

Aos riscos tecnológicos que já corremos, não precisamos adicionar o de perder o idioma. Orwell já tinha alertado que, se o pensamento corrompe a linguagem, a linguagem também pode corromper o pensamento.

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/aos-riscos-tecnologicos-que-ja-corremos-nao-precisamos-adicionar-o-de-perder-o-idioma/

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https://pt.wikipedia.org/wiki/Napole%C3%A3o_Mendes_de_Almeida
Napoleão Mendes de Almeida

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https://williamshakespearewilliam.blogspot.com/2009/02/hamlet-ato-ii-cena-ii.html
HAMLET, ATO II, Cena II
Polônio: Que é que o meu príncipe está lendo?
Hamlet: Palavras, palavras, palavras...
Polônio: A que respeito, príncipe?
<...>
Hamlet: Calúnias, meu amigo. Este escravo satírico diz que os velhos têm a barba grisalha, a pele do
rosto enrugada, que dos olhos lhes destila âmbar tenue e goma de ameixeira, sobre carecerem de espírito
e possuírem pernas fracas. Mas embora, senhor, eu esteja íntima e grandemente convencido da verdade
de tudo isso, não considero honesto publicá-lo;

2 comentários:

Davi disse...

Fala-se em francês, pontua-se em russo (Guerra e Paz, Tolstoi)
https://www.instagram.com/reel/DFv6Z-Evq0D/

demi disse...

Obrigado pela interessante observação e pelo linque ao texto!