terça-feira, 21 de outubro de 2025

Humanidades


Quem cunhou a palavra “cibernética” foi Norbert Wiener em 1948, num livro com o provocador subtítulo de “controle e comunicação no animal e na máquina”. A semântica da palavra é descrita pelo próprio Wiener: “derivei-a do grego ‘kybernetes’, ou ‘timoneiro’. É a mesma palavra grega de onde provem ‘governante’”. Assim, semanticamente, a raíz “ciber” está associado a controle e governo. “Cibernética” ficaria próximo de “governança”.

O trabalho de Wiener está também fortemente ligado à evolução da Inteligência Artificial. Em outra obra dele, “O Uso Humano de Seres Humanos”, de 1950/1954, há um conjunto de reflexões que ainda parecem muito atuais. O livro alerta que o ser humano está numa corrida entre o aprender e o risco de desaparecer. As novas tecnologias seriam “facas de dois gumes”: caberá aos humanos usá-las para o bem ou para a catástrofe.

Dois acontecimentos recentes reforçam esse pensamento crítico: há dias o governo da Albânia anunciou que terá agora uma “ministra virtual”, IA integrando o governo. Alegam os que defendem a ideia que, com IA, não haverá corrupção possível, ou nepotismo, e que a transparência dos atos será maior… Parece um caminho fácil, levando a uma solução falsa. Como o próprio Wiener diz na obra citada, “uma sociedade humana só será possível entre humanos”.

Um segundo ponto que pode ser significativo, é como abordamos hoje os riscos a que realmente estamos expostos no mundo das redes. Um dos pontos de destaque e discussão é como proteger crianças e adolescentes dos perigos que os espreitam. O caminho escolhido parece ser o de “sanitizar” o ambiente em que crianças e adolescentes vivem: limpá-lo das mazelas e dos riscos que ele certamente contem. É um objetivo voltado a “eliminar antecipadamente perigos”. Parece-me, entretanto, que não há como eliminar os perigos que há no mundo, da mesma forma que não há como tornar adequada para crianças uma rua movimentada, ou uma floresta segura para excursionistas. Há, sim, que se educar os tutores das crianças sobre os perigos que existem e as melhores formas de evitá-los. Há que se ensinar às crianças a contenção e a o uso de resursos seguros. E há, finalmente, que responsabilizar e punir os agentes reais que perpetram o abuso. Como diziam os antigos, quem brinca com fogo se queima, e não há como torná-lo seguro para crianças. A única forma segura é mantê-las longe do fogo, explicar que ele sempre queimará, e punir quem as expuser propositadamente ao dano. Ou seja, para as crianças, tutela e ensino. Para os adultos, mais educação e letramento digital, e menos tutela que embota o senso crítico.

Talvez possamos evitar, com isso, o que outra publicação recente - a “AI 2027” - traz de assustador: no ritmo em que estamos, se não atentarmos ao rumo tomado, a humanidade corre o risco de se extinguir em poucos anos. Esperemos que esse seja um simples alerta, superável por uma tomada de consciência em tempo hábil. Voltando ao livro do Wiener, ele alerta que “qualquer uso do ser humano, em que ele é menos demandado, ou a ele é atribuido menos do que sua plena potencialidade preveja, torna-se uma degradação e um desperdício”.

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/na-era-digital-e-preciso-mais-educacao-e-letramento-digital-e-menos-tutela/

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o livro do Norbert Wiener:



Hence "Cybernetics," which I derived from the Greekword kubernetes, or "steersman,'* the same Greek wordfrom which we eventually derive our word "governor."

Capítulo 9, “A primeira e a segunda revolução industrial” - segunda edição. 
Let us remember that the automatic machine, whatever we think of any feehngs it may have or may not have, is the precise economic equivalent of slave labor. Any labor which competes with slave labor must accept the economic conditions of slave labor. It is perfectly clear that this will produce an unemployment situation, in comparison with which the present recession and even the depression of the thirties will seem a pleasant joke. This depression will ruin many industries—possibly even the industries which have taken advantage of the new potentialities. However, there is nothing in the industrial tradition which forbids an industrialist to make a sure and quick profit, and to get out before the crash touches him personally. Thus the new industrial revolution is a two-edgeds word. It may be used for the benefit of humanity, but only if humanity survives long enough to enter a period in which such a benefit is possible. It may also be used to destroy humanity, and if it is not used inteligently it can go very far in that direction. There are, however, hopeful signs on the horizon. Since the publication of the first edition of this book, I have participated in two big meetings with representatives of business management, and I have been delighted to see that awareness on the part of a great many of those present of the social dangers of our new technology and the social obligations of those responsible for management to see that the new modalities are used for the benefit of man, for increasing his leisure and enriching his spiritual life, rather than merely for profits and the worship of the machine as a new brazen calf. There are many dangers still ahead, but the roots of good will are there, and I do not feel as thoroughly pessimistic as I did at the time of the publication of the first edition of this book.

https://www.goodreads.com/work/quotes/148587-the-human-use-of-human-beings-cybernetics-and-society

Any use of a human being in which less is demanded of him and less is attributed to him than his full status is a degradation and a waste.”

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Ser ou não ser?

Há peças imortais que precisam ser revisitadas de tempos em tempos. São como camaleões: adaptam-se à época da releitura, revelando nuances diferentes das que haviam sido notadas pelas gerações anteriores. Um exemplo disso é o Hamlet, de Shakespeare (aliás, num texto interessante do dia 4 passado, Ted Gioia explora uma simetria bem intrigante: a relação entre o comportamento do príncipe da Dinamarca e a atual “geração Z”). Aproveito para tentar outro paralelo, talvez simplório, entre Hamlet e a IA.

Logo no começo há a aparição do fantasma do pai de Hamlet que, ao contar como foi assassinado, pede vingança. É o motivante central da peça. Hamlet se pergunta se a visão é real, ou uma tentação demoniaca. Hoje temos uma dúvida recorrente quando recebemos vídeos que podem ser “deep fakes”, mas são verossíveis, contam algo possível e, até, propõem ação. Há verdade na “voz da máquina”? Saberemos julgar? Agiremos por convicção ou convencidos por ela?

Hamlet assume que buscará vingar a morte do paí, para a qual a própria mãe teria colaborado, casando-se depois com o tio usurpador. E, nessa busca de vingança, arquiteta um plano, um “algoritmo”, para tentar fazer com que os culpados se revelem: monta uma peça, a “ratoeira”, em que encena, à vista de todos, os detalhes do envenenamento do pai, mas sem citá-lo. Ao final, a clara perturbação causada nos suspeitos mostra que o fantasma do pai transmitiu verdade. Sim! A IA pode dar palpite certo!

Indo ao clímax da peça, no famoso solilóquio “ser ou não ser”, Hamlet tem que decidir sobre vida ou morte (suicídio), ação ou omissão, e em ambos os casos há o temor de efeitos futuros muito ruins. A analogia aqui é dupla: se devemos ou não usar a IA em nossas decisões e, na discussão sobre regulação, qual a medida certa do remédio. Na peça, a decisão por agir gerará grande destruição. Mortes acidentais, algumas até por desgosto. O amor e a inocência perdem-se em meio ao caos e Ofélia, sua amada, enlouquece e morre numa espécie de “suicídio poético”, deixando-se afogar por achar que Hamlet estaria louco (aliás ele, acidentalmente, matara o pai de Ofélia). Não faltam exemplos de pessoas que optaram por solução drástica, após longas conversas com IA. Na era das máquinas, da vulnerabilidade emocional, da solidão, da influência da IA e das redes sociais, quem protegerá a empatia?

Finalmente, rememorando a morte do bobo da corte Yorick com sua caveira na mão, Hamlet conclui que a morte nivelará tudo. A dúvida do “ser ou não ser” será resolvida ao fim. Se trocarmos a caveira por um iphone, teremos o nivelamento atual.

A tragédia da consciência diante da incerteza, termina com mais violência e traição: veneno oculto na espada de Laertes e na taça da vitória. Acabam mortos, tanto os que urdiam a trama, quanto o próprio Hamlet. Eis aí outro ponto de alerta: o fantasma, os algoritmos, a armação, os venenos, acabam com a família reinante em Elsinore. As últimas palavras de Hamlet são para o amigo Horácio, e poderiam ser um recado amargo para o futuro da voz humana: “o resto é silêncio”.

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/ser-ou-nao-ser-shakespeare-ajuda-a-explicar-alguns-dos-dilemas-atuais-da-inteligencia-artificial/

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O artigo citado, do Ted Gioia
https://www.honest-broker.com/p/hamlet-is-the-gen-z-story-we-need

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Hamlet:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Hamlet




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