Terminou há dias em Dublin a 84a reunião da ICANN, “Internet Corporation for Assigned Names and Numbers”. São tres reuniões por ano, com rodízio entre as regiões. ICANN entrou em cena em 1998 para gerenciar o espaço de nomes de domínio, e a distribuição de identificadores numéricos aos dispositivos conectados à Internet. Antes dela quem desempenhava esse papel era a IANA, que em 1989 delegou o .br ao time de redes brasileiro.
Por ser a reunião 84, vem à mente a obra de George Orwell “1984”, que descreve um mundo onde a linguagem, a memória e o próprio pensamento haviam sido manietados pelo poder. Tudo era monitorado, tudo era filtrado, tudo era redefinido. O “Ministério da Verdade” não buscava compreender a realidade, mas fabricá-la.Estamos num momento em que a Internet — rede que nasceu da abertura, da colaboração e da confiança — começa a enfrentar dilemas que evocam ecos de “1984”. Claro que não é o mesmo cenário, mas há sinais que inquietam.
O crescimento da vigilância, travestindo-se de segurança ou eficiência; o poder algorítmico que decide o que devemos lembrar e o que esquecer; a fragmentação técnica e política da rede em feudos digitais; a erosão da privacidade por identificações compulsórias. E há ainda o risco maior: substituirmos a arquitetura aberta da Internet por sistemas de controle, por cibernética.
A Internet, como uma cidade, tem suas vielas, suas esquinas escuras, suas áreas de poder, suas praças de encontro e seus becos de confabulação, E, como as ruas da cidade, também sente a mão da ordem e do controle. O temor que se espalha é de que o sonho da Internet livre comece a se estreitar. Há quem queira murar, quem queira limpar os becos, apagar as paredes grafitadas.
Mas há também contrapesos que sustentam a esperança: a criptografia que protege o silêncio legítimo; a governança multissetorial que mantém viva a pluralidade; as leis de proteção de dados que afirmam o indivíduo; a educação digital que liberta pelo conhecimento; as tecnologias abertas que garantem verificabilidade e confiança.
Talvez Orwell não imaginasse que um eventual futuro “Grande Irmão” um dia usaria logotipos sorridentes, interfaces elegantes e políticas de privacidade que ninguém leria, mas ele pressentiu que o perigo viria da busca de conforto. Que aceitaríamos vigilância sob o nome de proteção. Benjamin Franklin já nos tinha admoestado de que o sacrifício da liberdade em nome da segurança pode nos levar a perder ambas. A Internet é um espelho da humanidade, e espelhos, sabemos, são frágeis. Mas é melhor um espelho trincado do que um vidro negro, opaco.
A liberdade digital não é um dado, um estado natural. É uma construção diária, persistente e coletiva. Termino lembrando uma antiga máxima, que poderia ser lema dos que teimam em resistir: “per angusta ad augusta” - por caminhos estreitos, às grandezas. Talvez o destino da rede, e da própria liberdade, seja este: seguir tropeçando pelos becos apertados da história, mas sem jamais deixar de caminhar.
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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/quais-as-semelhancas-entre-a-internet-atual-e-o-mundo-de-1984/
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icann 84:
https://meetings.icann.org/en/meetings/icann84/?_gl=1*11xha3h*_gcl_au*MjA4NDkzMTU1My4xNzYyMjE3MjI5
https://icann84.sched.com/
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Citação de Benjamin Franklin:
“They who can give up essential liberty to obtain a little temporary safety, deserve neither liberty nor safety.”
De Robert Heinlein:
“Secrecy is the keystone to all tyranny. Not force, but secrecy and censorship. When any government … undertakes to say to its subjects, ‘This you may not read, this you must not know,’ the end result is tyranny and oppression, no matter how holy the motives.”
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E uma versão da crônica com ajuda do ChatGPT:1984 revisitado — a alma encantadora da Internet
Há, por detrás dos cabos, dos protocolos e dos endereços IP, uma alma. Uma alma que pulsa entre máquinas, feita de vozes humanas e de silêncios luminosos. A Internet, como as ruas de outrora, tem suas vielas, suas esquinas escuras, suas praças de encontro e seus becos de murmúrio. E, como as ruas, também sofre os caprichos da ordem e do poder.
Outro dia terminou a ICANN84, essa assembleia onde o mundo, em sua versão digital, tenta ainda conversar antes de decidir, discutir antes de mandar. Mas o rumor que vinha das salas - e que atravessava os fios como um sussurro elétrico - era o de que o sonho da Internet livre começa a se estreitar.
Há quem queira murar, quem queira vigiar, quem queira limpar os becos e apagar as paredes grafitadas de opinião. Ah, como se as ideias tivessem medo da luz! Recordei, então, o velho Orwell, que em 1984 viu nascer um tempo de olhos vigilantes e palavras controladas. Talvez ele não imaginasse que o “Grande Irmão” um dia usaria logotipos sorridentes, interfaces elegantes e políticas de privacidade que ninguém lê. Mas ele pressentiu - oh, sim - que o perigo viria do conforto. E que um dia chamaríamos censura de “segurança”, e vigilância de “proteção”.
As nações erguem muros digitais, cada uma proclamando sua soberania de dados, seu firewall patriótico, seu domínio nacional.
A rede, essa que nasceu universal, começa a se fragmentar como um espelho que cai no chão: cada pedaço reflete um rosto diferente, uma verdade diferente, uma versão conveniente do real. O cidadão digital, cansado de ser número, começa a desconfiar do próprio reflexo.
E no entanto - ainda há ternura na rede.
Há o programador que insiste em abrir código, o ativista que defende a privacidade, o acadêmico que debate em praça pública, o gestor que acredita no multissetorialismo como antídoto contra o autoritarismo. Há luz nos servidores e esperança nos pacotes que cruzam oceanos.
A Internet é o espelho da humanidade - e espelhos, sabemos, são frágeis. Mas é melhor um espelho trincado do que um vidro negro, opaco, que nos devolve apenas o olhar do censor.
Termino lembrando uma máxima antiga, que bem poderia ser lema dos que teimam em resistir:
Per angusta ad augusta - “Por caminhos estreitos, às grandezas.”. Talvez o destino da rede, e da própria liberdade, seja este: seguir tropeçando pelos becos apertados da história, mas sem jamais deixar de caminhar.


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