terça-feira, 30 de dezembro de 2025

Dos tempos

O ano se vai e seguimos por aí… Peço sua complacência para, aproveitando o momento gregoriano, fazer algumas divagações sem tecnologia, nem o devido estofo humanistico… Não é trivial analisar, ao menos a meus olhos míopes, a complexidade do mundo de hoje, e, menos ainda, ter claro como deveríamos lidar com o que há, e com o que o destino nos traz. Uma provocação interessante seria explorar eventuais conexões entre “fato” (aquilo que foi feito), “fado” (destino, aquilo que foi dito, postulado por alguma trancendência), e “fatalidade”, um acontecimento vivido como destino.

Quando sentimos a serenidade abalada, vem à memória o torturado solilóquio de Hamlet: o dilema entre sofrer passivamente as flechas da fortuna, ou postar-se contra o mar de aflições. O célebre trecho não refletiria uma opção entre coragem e covardia, mas entre duas atitudes diante da fatalidade. Hamlet sabe que “o mar” não pode ser derrotado e hesita, não porque teme agir, mas porque sabe que sua ação não resolverá o mundo. Hamlet não aceita o destino como faria um estóico, mas, por outro lado, também não o assume como um herói trágico. A pergunta dele, talvez não seja “o que se deve escolher?”, mas “como viver com o que não escolhemos?”.

Para o clássico “herói trágico”, o destino não é evitável: o herói não escolhe o fado, mas escolhe como responder a ele. O trágico não está no sofrimento, mas na dignidade de sustentar o próprio gesto sem garantias. Os estóicos retrabalham esse conceito por meio da razão. Para eles, o destino não é capricho dos deuses, mas uma necessidade racional do cosmos. A ética consistiria em viver de acordo com a natureza, aceitar o que não depende de nós e agir virtuosamente no que depende. O estóico não se queixa, rejeita o ressentimento, e mantem a dignidade sem ilusões. Mas acaba por fazer uma amenização do trágico: o mundo seria, no fundo, compreensível, e a serenidade, possível.

Uma terceira via, que seguiria sem rebelar-se ao fado, nem tentar sua “domesticação” via razão, seria a adotada por Nietzsche: o “amor fati”, literalmente “amor ao destino”, amor ao mundo como é, sem buscar desculpas. Em Ecce Homo, ele afirma: “minha receita para a grandeza do ser humano (amor fati) é não querer nada diferente, nem pra frente, nem pra trás, por toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, ou justificá-lo, mas amá-lo”. Assumir o destino como fato, e responder por ele, sem a resignação estóica, nem a hesitação hamletiana. Não se questiona se o mundo é justo, racional ou digno; pergunta-se apenas se somos capazes de afirmá-lo. Amor fati — amar o destino — seria a recusa radical ao álibi. Não cabe dizer “tudo acontece por alguma razão”, mas sim afirmar “isto aconteceu — e eu o assumo”. Amar o destino é tratar o fado como se fato fosse, não no sentido de tê-lo causado, mas em responder por ele.

Amenizando, haveria talvez ainda outra resposta, bem menos rebuscada e muito mais conhecida, que veio de um conjunto musical nos anos 70. Ela nos tranquiliza lembrando-nos que, quando estamos em tempos de tribulação, “… a mâe Maria vem a mim e me diz, com palavras de sabedoria: ‘deixa estar’”… Let it be!

Bom ano a todos!

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/as-dificuldades-para-lidar-com-o-que-o-destino-nos-traz/

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Solilóquio de Hamlet
https://shakespearebrasileiro.org/ser-ou-nao-ser-uma-traducao-de-machado-de-assis-mario-amora-ramos/
<...> Acaso
É mais nobre a cerviz curvar aos golpes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
<...>
https://en.wikipedia.org/wiki/To_be,_or_not_to_be
<...> Whether 'tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing end them
<...>

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Herói trágico
https://pt.wikipedia.org/wiki/Her%C3%B3i_tr%C3%A1gico

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Amor Fati
https://pt.wikipedia.org/wiki/Amor_fati

Ecce Homo, - "como tornar-se o que se é..."
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ecce_homo_(livro)
https://www.gutenberg.org/ebooks/52190



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Let it Be
https://en.wikipedia.org/wiki/Let_It_Be_(song)
When I find myself in times of trouble, Mother Mary comes to me
Speaking words of wisdom, let it be
And in my hour of darkness she is standing right in front of me
Speaking words of wisdom, let it be
Let it be, let it be, let it be, let it be
Whisper words of wisdom, let it be
<...>

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