Notícia recente sobre fraudes: uma autoridade foi personificada com o uso de voz e vocabulário parecidos com os seus. O evento foi qualificado como exemplo de “um novo normal”. Um dos últimos bastiões em que humanos se apoiam – seus sentidos, as recordações que tem de rostos, timbres, formas de expressão – parece superado por ferramentas de tecnologia: quem dispuser de uma simples foto de alguém, e gravação de trechos curtos de sua fala, poderia facilmente mimetizar essa pessoa. Especialmente no caso de personagens públicas, é trivial achar não apenas fotos e trechos de voz, como textos e falas, que podem “ensinar” a ferramenta a imitar o jeito da vítima. Não há moderador automatizado capaz de impedir que um falso ministro fale como um verdadeiro.
Estamos ultrapassando limiares não triviais, e as consequencias são difíceis de avaliar. A confiança em nossos instintos e sensações está sendo erodida por uma tecnologia que nos assegura podermos confiar na análise que ela faz do ambiente que no cerca. Ao contrário dos animais, que aprenderam atavicamente a identificar perigos e, até hoje, respondem a esses impulsos instintivos, a civilização nos legou uma visão menos “intuitiva” e mais intelectual na avaliação da realidade. O risco é que a tecnologia tende a embotar ainda mais esse nosso discernimento original. Em termos dos conceitos de “sinal e ruído”, definidos por Claude Shannon há mais de 70 anos, está cada vez mais difícil separar o que é uma mensagem real recebida, de um indesejável ruído. Pior que isso, estamos delegando a essa mesma tecnologia - que pode travestir ruído de sinal - apoiar-nos nessa seleção. Se algo passou pelos “filtros”, então é verdade e pode ser aceito pelo destinatário: opta-se por uma tutela digital que dispensa a necessidade de pensamento crítico próprio e o terceiriza à tecnologia de que dispomos.Antes falei da “inútil precaução”, no Barbeiro de Sevilha, como exemplo da inutilidade de certas proteções, que nos levam a esquecer a busca dos reais perpetradores do mal. Toda a cadeia de transmissão tem responsabilidade no processo, mas é importante identificar o agente central e o objetivo visado. O “novo normal” nos mantem reféns de uma análise rápida e superficial do que nos cerca, enquanto abrirmos mão de esforços pessoais maiores, que resultariam em melhor apreensão crítica da realidade e dos perigos que sobrevêm.
Outroa referência que me veio à mente agora: “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati. Em linha que lembra temas de Kafka, o livro narra como o protagonista se prepara, a vida toda, para enfrentar uma iminente invasão de tártaros que… nunca ocorre. Sua rotina se limita ao forte Bastiani, enquanto espera o ataque iminente um inimigo abstrato. Em sua imobilidade, torna-se vítima de outras ameaças reais, e consome a existência nessa espera infinda. Acreditar que perigos possam ser automaticamente apagados, silenciados ou filtrados, em vez de enfrentados com lucidez, talvez seja um passo perigoso rumo à nossa desumanização.