terça-feira, 21 de novembro de 2023

E agora, José?

Qual o melhor nome de domínio na Internet para que José, de forma perene e segura, exponha suas idéias, arquive fotos e momentos importantes da vida, seja encontrável pelos seus amigos? Já foi tópico quente na rede a discussão sobre a melhor forma de se manter uma identidade. E, claro, a primeira idéia era que “quanto mais curto o identificador, melhor!”. No caso, nosso José podia ter conseguido o jo.se, que existe e funciona normalmente. Ou o ze.ca, que também existe. Como ambos já foram delegados há tempos, resta buscar alternativas, mas antes seria útil pensar no que tornaria um nome melhor ou pior.

O primeiro ponto a considerar é a garantia de sua continuidade… Se José escolhar ancorar suaidentidade numa rede numa rede social de que participa, armazenando lá suas informações, formas de contacto, atividades, discussões, é preciso lembrar que a perenidade dependerá da sobrevida da rede social em questão. Muitas delas sumiram ou trocaram de nome com o tempo, levando junto a forma de localização de seus moradores. Se José tivesse concentrado seus dados e forma de identificação em plataformas como o Orkut, o MySpace e outras,certamente teria que retomar o trabalho.

Outro ponto - que ficou menos relevante com as ferramentas de busca e todos os recursos de associação de nomes – é o tamanho do nome. Aliás, uma das primeiras ferramentas de busca já ostentava um nome não muito curto: altavista.com.

Por fim há que examinar características do domínio sob o qual José criará sua identificação: como registar e manter o nome, de que conceito aquele domínio de topo goza na rede e, finalmente, decidir onde hospedará o conteúdo. Há semântica envolvida na escolha do sobrenome. Nos exemplos citados, o “se” do jo.se é Suécia, enquanto o “ca” de ze.ca é Canadá, ambos códigos de país. Na variedade de “domínios genéricos” há também um extenso leque de escolhas, começando pelos tradicionais .com, .net, .org. Quando ao custo, há registros gratuitos (como .tk, Tokelau) que buscam outros modelos de remuneração, e os com pagamento anual. É importante evitar os que tem fama de hospedar atividades maliciosas – consultem-se listas com os domínios mais usados pelos mal-intencionados. É bom também examinar se o domínio é aberto para registro por todos, ou se é restrito a registrantes de uma região. O .br, por exemplo, exige CPF ou CNPJ, o que garante que qualquer litígio será resolvível no país. Se optar pelo .br, José poderia escolher dentre as opções que existem, como josé.art.br, josé.eco.br, etc, a que lhe parecer mais adequada. E poderá usar o acento no nome, dado que no .br caracteres acentuados são possíveis também em nome de domínio.

Nomes são importantes e perduram. Em O Nome da Rosa, Umberto Eco encerra com “stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus” – “da rosa original resta apenas o nome, nada mais”


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"E agora, José", Carlos Drummond de Andrade:
https://coletivolirico.com.br/e-agora-jose-de-carlos-drummond-de-andrade/

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
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Uma das listas de domínios pouco seguros:
https://trends.netcraft.com/cybercrime/tlds

Cybercrime on Top Level Domains:
Top 50 TLDs with the highest cybercrime incidents to active sites ratio
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"O Nome da Rosa", Umberto Eco
https://it.wikipedia.org/wiki/Stat_rosa_pristina_nomine,_nomina_nuda_tenemus
"Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus"
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terça-feira, 7 de novembro de 2023

Nuvens carregadas

Num mundo informatizado é cada vez maior a dependência que temos de recursos eserviços providos por terceiros. A gangorra, que oscila entre a autossuficiência em processamento e armazenamento e a terceirização destes insumos, está hoje bem distante do que nossa mesa, ou mesmo a empresa em que trabalhamos, consegue prover por si. E, insidiosamente, a segurança de nossos aplicativos e dados também escapa ao nosso controle direto, como no caso do armazenamento “em nuvem”.

Houve conhecidos problemas de segurança e de vazamento de dados em provedores dessas soluções. Falhas de sistema – “bugs” - são as brechas mais exploradas, mas também a vulnerabilidade humana é visada, como parece ter ocorrido no episódio com a Azure, nuvem da Microsoft. Nas palavras do conhecido especialista em segurança Bruce Schneier, “hackers amadores atacam sistemas, os profissionais miram nos humanos”. Prá não perder a deixa, reforço os cuidados com senhas na tirada de Chris Pirillo: “senhas são como roupa íntima: não devem ser mostradas a ninguém, devem ser trocadas amiúde e não podem ser compartilhadas com estranhos”.

Ainda no contexto, a mesma Microsoft acaba de divulgar uma iniciativa para melhorar a segurança do seu ecossistema: a SFI, "Secure Future Initiative". Vale a pena uma leitura no documento, que avoca a multiplicidade de novos riscos a que os sistemas estão sujeitos para definir proteções e, especialmente, buscar formas de usar inteligência artificial como ferramenta de defesa, além de esperados avanços em engenharia. Chama a atenção a terceira proposta, na seção “aplicação mais firme das normas internacionais”. Postula-se aí a necessidade de haver uma convenção internacional, à la
Convenção de Genebra, sobre princípios e normas a serem seguidos pelos governos. A partir de uma discussão conduzida multissetorialmente, pelos diversos setores da sociedade, seriam estabelecidas linhas a não serem ultrapassadas. Conclama o texto a que a comunidade “abomine esforços de alguns Estados nacionais que buscam instalar ‘malware’ ou criar brechas ou fraquezas na segurança nas redes de provedores de infraestrutura crítica”. Entre as insfraestruturas críticas, além das usuais como energia, água e sistemas médicos, o documento inclui “provedores de armazenamento em nuvem” e termina com tres recomendações:
- Estados não devem se envolver, nem permitir que seus cidadãos se envolvem em operações que comprometam a segurança, integridade ou confidencialidade de serviços “em nuvem”.
- Estados não devem tentar comprometer a segurança de serviços em nuvem para propósitos de espionagem
- As operações de segurança dos Estados não devem onerar os que não são objeto das operações.

Claro que se nota um viés de auto-proteção, mas não há como se negar a pertinência do tema. Agora que migramos nossa vida para a nuvem, que tenhamos ao menos alguma proteção quanto à nossa privacidade e segurança. Milan Kundera, em A Insustentável leveza do Ser e bem antes da Internet, cravou: “...quando uma conversa entre amigos diante de um copo de vinho é transmitida pelo rádio, uma coisa fica evidente: o mundo se transformou num campo de concentração.”

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nuvens:
https://en.wikipedia.org/wiki/Lenticular_cloud



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A frase de Milan Kundera:

"When a private talk over a bottle of wine is broadcast on the radio, what can it mean but that the world is turning into a concentration camp?"
MILAN KUNDERA, The Unbearable Lightness of Being
em
http://www.notable-quotes.com/k/kundera_milan.html#google_vignette

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O texto do SFI:

<...>
Stronger application of international norms 

Finally, we believe that stronger AI defenses and engineering advances need to be combined with a third critical component – the stronger application of international norms in cyberspace. In 2017, we called for a Digital Geneva Convention, a set of principles and norms that would govern the behavior of states and non-state actors in cyberspace. We argued that we needed to enforce and augment the norms needed to protect civilians in cyberspace from a broadening array of cyberthreats. 

In the six years since that call, the tech sector and governments have taken numerous steps forward in this space, and the precise nature of what we need has evolved. But in spirit and at its heart, I believe the case for a Digital Geneva Convention is stronger than ever. 

The essence of the Geneva Convention has always been the protection of innocent civilians. What we need today for cyberspace is not a single convention or treaty but rather a stronger, broader public commitment by the community of nations to stand more resolutely against cyberattacks on civilians and the infrastructure on which we all depend. Fundamentally, we need renewed efforts that unite governments, the private sector, and civil society to advance international norms on two fronts. We will commit Microsoft’s teams around the world to help advocate for and support these efforts.
 
First, we need to stand together more broadly and publicly to endorse and reinforce the key norms that provide the red lines no government should cross. 

We should all abhor determined nation-state efforts that seek to install malware or create or exploit other cybersecurity weaknesses in the networks of critical infrastructure providers. These bear no connection to the espionage efforts that governments have pursued for centuries and instead appear designed to threaten the lives of innocent civilians in a future crisis or conflict. If the principles of the Geneva Convention are to have continued vitality in the 21st century, the international community must reinforce a clear and bright red line that places this type of conduct squarely off limits.
 
Therefore, all states should commit publicly that they will not plant software vulnerabilities in the networks of critical infrastructure providers such as energy, water, food, medical care, or other providers. They should also commit that they will not permit any persons within their territory or jurisdiction to engage in cybercriminal operations that target critical infrastructure.
 
Similarly, the past year has brought increasing nation-state efforts to target cloud services, either directly or indirectly, to gain access to sensitive data, disrupt critical systems, or spread misinformation and propaganda. Cloud services themselves have become a critical piece of support for every aspect of our societies, including reliable water, food, energy, medical care, information, and other essentials. 

For these reasons, states should recognize cloud services as critical infrastructure, with protection against attack under international law. This should lead to three related commitments: 

* States should not engage in or allow any persons within their territory or jurisdiction to engage in cyber operations that would compromise the security, integrity, or confidentiality of cloud services. 

* States should not indiscriminately compromise the security of cloud services for the purposes of espionage. 

* States should construct cyber operations to avoid imposing costs on those who are not the target of operations. 

Second, we need governments to do more together to foster greater accountability for nation states that cross these red lines. The year has not been lacking in hard proof of nation-state actions that violate these norms. What we need now is the type of strong, public, multilateral, and unified attributions from governments that will hold these states accountable and discourage them from repeating the misconduct. 

Tech companies and the private sector play a major role in cybersecurity protection, and we are committed to new steps and stronger action. But especially when it comes to nation-state activity, cybersecurity is a shared responsibility. And just as tech companies need to do more, governments will need to do more as well. If we can all come together, we can take the types of steps that will give the world what it deserves – a more secure future.
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terça-feira, 24 de outubro de 2023

ICANN em Hamburgo

Em Hamburgo reunião da ICANN comemora 25 anos de sua existência. Estabeleceu-se em 30 de setembro de 1998 como uma entidade multissetorial para coordenar os recursos comuns da Internet, o que inclui a gestão dos números IP e a manutenção e operação da raíz de nomes. É na raíz de nomos que se ancoram todos os domínios de topo, como os gTLDs (genéricos) .COM, .ORG, NET, e os ccTLDs (domínios de código de país) .BR, .DE, .IT etc. A missão da ICANN foi, assim, assumir as tarefas que estavam originalmente a cargo da IANA (Internet Assigned Names Authority): um pequeno grupo de pessoas capitaneado Jon Postel. Por azares do destino, Postel faleceu inesperadamente apenas 18 dias depois da inauguração da ICANN, frustando assim sua condução como chefe de operações da recém-criada organização Esse foi um dos fatores que fez com que ICANN levasse algum tempo até se estabilizar, até que passasse a contar em seu corpo com a ativa participação de pioneiros como Steve Crocker, Vint Cerf, John Klensin e outros.

O evento em Hamburgo, que contou com o apoio do DENIC, o NIC da Alemanha - o terceiro maior ccTLD do mundo - teve um painel relembrando as etapas, desde as reuniões preparatórias anteriores a 1998. Na programação técnica usual, continuará a discussão sobre a forma de se abrir uma nova temporada de propostas para a criação de mais gTLDs.

Quanto a como tratar dos riscos e ameaças que plataformas e serviços criados sobre a rede trazem, estamos em momento bastante crítico. A Inglaterra, por exemplo, aprovou uma legislação bastante restritiva e de vigilância de conteúdos que, à guisa da proteção a crianças e adolescentes, responsabilizará diretamente os provedores que não removerem conteúdo “ilegal”. Em linha aparentemente oposta, Benjamin Brake do recém criado Departamento de Política Digital e Dados, do Ministério de Assuntos Digitais e Transportes da Alemanha, citou em sua fala de abertura na ICANN que alguns dos princípios fundantes da rede podem estar em risco. Nas palavras dele, há, mesmo no chamado “espectro progressivo” da comunidade, os que postulam uma “censura bem-intencionada”, que dê a si mesma um aspecto de virtude que muitos consideram realmente existir.

Coincidentemente li há dias a primeira constituição Brasileira, de 1824, do Império – encontrável na íntegra em planalto.gov.br – e dela pinço dois item do seu último artigo, o 179. Repasso em linguagem original da época:
“IV. Todos podem communicar os seus pensamentos, por palavras, escriptos, e publical-os pela Imprensa, sem dependencia de censura; com tanto que hajam de responder pelos abusos, que commetterem no exercicio deste Direito, nos casos, e pela fórma, que a Lei determinar.”
“XXVII. O Segredo das Cartas é inviolavel. A Administração do Correio fica rigorosamente responsavel por qualquer infracção deste Artigo.”

A arte de equilibrar esses princípios com eventuais medidas de proteção que não os degradem é um ponto crucial, e que deve ser discutido hoje. Lembrando Marx (o Groucho), “Veja, esses são meus princípios… Se você não gosta deles, eu tenho outros…”.
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https://icann78.sched.com/


terça-feira, 10 de outubro de 2023

A Comunidade Internet

Em Quioto, Japão, começou o Fórum de Governança da Internet de 2023, evento que, por excelência, reúne a comunidade multissetorial que debate os rumos da rede. Estamos num complicado ponto de inflexão sob vários aspectos. Há quase 30 anos, em outubro de 1996, o presidente dos EUA, Bill Clinton, assinava atualização da E-FOIA- “Eletronic Freedom of Information Act Amendments”. O contexto pode ser ancorado numa anterior proposta de legislação para combater a pornografia na Internet: o CDA “Communications Decency Act”, que havia sido assinada pelo mesmo Clinton em junho de 1995. Houve imediata reação da “comunidade Internet”, contra o que considerou uma tentativa de censura à Internet. Neste clima, John Perry Barlow, que em 1990 fundara com Mitch Kapor e John Gilmore a EFF - Eletronic Frontier Foundation, publicou em fevereiro de 1996 a famosa “Declaração de Independência do Ciberespaço”. Barlow instava os governos do mundo a que “tirassem suas mãos do novo mundo de idéias”, a Internet, permitindo a todos seus integrantes total liberdade de expressão, “independentemente de quão estranha ela possa parecer”. A pressão da “comunidade Internet” surtiu efeito, e o CDA perdeu bastante do escopo original. Um trecho que restou, a seção 230, garantia a imunidade aos “provedores de meios de acesso e comunicação” em relação ao conteúdo que seus usuários gerassem e, ao mesmo tempo, lhes dava liberdade de agir dentro de seus “códigos de conduta”.

Claro que muita coisa mudou desde então e, com as plataformas sociais, muitos dos que antes de classificariam como “intermediários” não caberiam mais nesse tipo de proteção. Mas o que também se sente é uma certa apatia e uma ausência da pressão que a tal “comunhidade Internet” sempre exerceu, visando a preservar os fundamentos originais da rede.

A essa visão idilica da Internet primeva, podemos contrapor o que Umberto Eco considerava como os problemas e as deformações que a rede trazia: num mundo onde todos falam, caberia a nós a tarefa de triar a qualidade, dentro da infinidade de dados. Delegar essa tarefa a outrem traz sempre o risco de perdermos muito de nossa autonomia, em nome de eventual “segurança”. Ainda na linha de Eco, em artigo recente Fernando Schuler adverte que: “...somos filhos de uma época de ódio e angústia não porque há gente ruim rondando uma sociedade indefesa, mas porque ganhamos liberdade e um poder inédito para revelar quem somos”. Afinal Vint Cerf, que acaba de fazer instigantes comentários na abertura do IGF, já nos tinha alertado de que “a Internet é o espelho da sociedade”.

Uma lei recém aprovada na Inglaterra propõe-se a nos livrar “das coisas ruins que há na rede”. Na definição de “ruim” é que mora o perigo e efeitos colaterais dessa lei são bem preocupantes.

Na Antígona, de Sófocles, peça escrita há quase 2500 anos, uma frase que ainda ressoa muito atual, e alerta para os riscos de confundirmos o bem e o mal: “aos que os deuses querem levar à destruição, o mal aparenta ser o bem”…

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Abertura do IGF

https://dig.watch/updates/stakeholders-vision-in-opening-remarks-at-igf-2023

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sobre o FOIA

https://efoia.bis.doc.gov

https://wikilai.fiquemsabendo.com.br/wiki/Hist%C3%B3ria_da_FOIA

https://www.justice.gov/oip/blog/foia-update-freedom-information-act-5-usc-sect-552-amended-public-law-no-104-231-110-stat

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Antigona, de Sófocles - versos citados 620-623

https://en.wikipedia.org/wiki/Whom_the_gods_would_destroy,_they_first_make_mad

https://www.simonandschuster.com/books/Antigone/Sophocles/9781681464022





terça-feira, 26 de setembro de 2023

Alhos e Bugalhos

O gosto por alho e cebola é pessoal. A cebola é Allium cepa, enquanto o alho é Allium sativum, ou seja, são “primos”, mas com características tão diversas que é fácil separá-los. E alhos de bugalhos? Ensina a avoenga sabedoria popular que alhos e bugalhos não devem ser confundidos. Nunca vi um bugalho, mas sei que não se deve serví-lo à mesa… Esse prefácio algo caótico visa a apontar riscos na tentiva generalista de rotular (e, em seguida, regular) aplicações e sistemas como sendo de IA.

O primeiro ponto a se levar em conta é que sistemas computacionais complexos e especialistas existem aos montes, e antes não ganhavam o epíteto de IA. Algoritmos fixos, fartamente usados em matemática e em computação, raramente se qualificariam. Isso não significa que não haja riscos importantes associados a eles, como, por exemplo, a falta de transparência nos métodos, objetivos e resultados buscados por quem os desenvolveu. Quando o objeto dos algoritmos somos nós mesmos, o perfil eles produzem serve para criar, à nossa revelia, uma “classificação” onde somos catalogados segundo critérios que fogem à luz. Mas pedir transparência de algoritmos não é o mesmo que “regular IA”.

Num sobrevoo simples, poderíamos chamar de IA sistemas que emulam comportamento humano, com sofisticação e dinâmica suficientes para se amoldar a novas e imprevistas situações. O apelo comercial e tecnológico da expressão “IA” faz com que uma barafunda de aplicativos, além dos que, de fato, usam IA, “pulem no mesmo vagão” para ganhar modernidade, visibilidade e poder de mercado.

Quanto à regulação desse “novo mundo”, acompanhemos as diversas iniciativas por ai. A mais recentem, a da Espanha, pretende criar uma “agência de supervisão” da IA. Será o momento? Silvio Meira, pesquisador na área, tem alertado para efeitos colaterais de uma eventual regulação açodada, feita sem conhecimento sólido da essência do ente que se quer regular. Dado o valor estratégico e financeiro da IA, freios mal definidos podem manietar a posição do Brasil na área. E não esqueçamos que já há sólida proteção de direitos fundamentais em nossa Constituição. Criar leis muito específicas, tirando vantagem do momento de apreensão em que vivemos, pode ser mais danoso que útil. Formular um marco ético-conceitual parece mais proveitoso. Não misturemos alhos com bugalhos...

Além dos modelos de programação, IA depende se equipamentos de processamento muito caros e difíceis de obter. Já temos centros de IA no país, e uma boa interlocução com os congêneres internacionais. Melhorar esse diálogo, buscar indicadores e medir os efeitos do uso de IA em diversos setores, parece caminho seguro, e que pode sugerir políticas e leis. Afinal, “o que não pode ser medido, não pode ser gerenciado”...

Nada disso muda o fato de que, com os impactos das tecnologias que rapidamente se expandem, o mundo já é outro. Retomo o brilhante fecho do artigo “O Inexorável”, de Eugênio Bucci, aqui no Estadão: “Olhe com ternura e compaixão para o mundo à sua volta, porque ele vai desaparecer num suspiro”. 

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Entrevista de Sílvio Meira, citada:

https://www.convergenciadigital.com.br/Inovacao/Silvio-Meira%3A-Entendimento-do-Brasil-sobre-Inteligencia-Artificial-e-raso-e-Lei-sera-um-erro-grave-64139.html

Artigo de Eugênio Bucci, citado:

https://www.estadao.com.br/opiniao/eugenio-bucci/o-inexoravel/

e outro sobre IA:

https://www.estadao.com.br/opiniao/eugenio-bucci/inteligencia-artificial-isso-deve-nos-assustar/

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Os cegos e o elefante:

https://www.esalq.usp.br/lepse/imgs/conteudo_thumb/mini/Os-Cegos-e-o-Elefante.pdf

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terça-feira, 12 de setembro de 2023

Tempos que mudam

 A partir de certa idade temos o direito de pensar, com certo grau de indulgência, nos “velhos e bons tempos”. Acontecimentos pessoais na semana, somados e textos que pareceram misteriosamente sincronizados com o estado de espírito, contribuem para um passeio em épocas numericasmente não tão distantes, mas em essência paleozóicas se comparadas com o que temos hoje. E a tocante crônica de Ignácio de Loyola Brandão ne domingo, “Apenas Zé”, firmou-me o propósito de ousar ir além das chinelas tecnológicas…

Minha primeira viagem aos EUA foi em 1980, para assistir ao SIGGRAPH em Seattle. À época os gráficos por computador e animações digitais eram foco dos melhores esforços dos computeiros, e o que mais reverberava no público em geral. E tive a honra de ir acompanhando o Prof. Oswaldo Fadigas, grande mestre da Poli e do ITA. Dessa viagem, que também incluiu São Francisco e Boston, me restaram excelentes memórias do comportamento dos norte-americanos, da fidalguia com que tratavam os visitantes, da ilimitanda confiança que deles se podia esperar, Aliás, o Prof, Fadigas, que tinha feito mestrado no MIT, não cansava de citar exemplos que reforçavam o que via em loco. Nenhum problema na entrada, carro alugado sem sequer cartão de crédito, voos funcionando pontualmente, e ainda aproveitamos para ver o recém lançado: “O Império Contra-ataca”! De lá pra cá muita coisa mudou. Hoje o tratamento na imigração é bem mais duro, a violência é mais presente, o apego à honra e à correção parece bastante empalidecido.

Em outro tema, comento – sem discutir o mérito – uma decisão da Suprema Corte norte-americana que deu ganho de causa a uma projetista de sítios web para casamentos, que se recusava a fazer sítios para “casais não tradicionais” (detalhes podem ser buscados sob “case 303 Creative v. Elenis”). O que me chamou a atenção – e pode ser útil em debates por aqui – é que a Corte traçou uma linha entre o que seria um “common carrier” - um serviço prestado indistintamente ao público, como telefonia, correios, etc - e o que é uma iniciativa limitada, que poderia restringir-se a seus princípios. A Corte, chamando à cena a Primeira Emenda, faz uma analogia entre direito à fala e uma publicação na Internet, defendendo que ninguém pode ser obrigado a “falar” algo com que não concorda. Ou seja a Corte garantiu à projetista o direito de “não falar” algo. Sem entrar no mérito da decisão e das idiossincrasias dos diferentes estamentos jurídicos, o que aqui me parece relevante e digno de mais discussão é essa taxonomia entre o que deveria ser atendido igualmente, por todos, e o que é limitado, a talante de seu provedor.

De minha pequena janela da engenharia, não ouso avaliar o que se passa com o homem atual e assim recorro a Chesterton,“O que há de Errado com o Mundo”: “o homem perdeu seu caminho. Ele tem sido um andarilho desde o Éden mas, ao menos, sempre soube (ou achava que sabia) o que procurava. <...> Pela primeira vez na história, ele começa realmente a duvidar do objeto de suas andanças pela Terra… Ele, que sempre houvera perdido o caminho, agora parece que ele perdeu o próprio endereço”…

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texto sobre os EUA antigos:

https://www.theamericanconservative.com/falling-out-of-love-with-america/

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SIGGRAPH 1980

https://history.siggraph.org/conference/siggraph-1980-7th-annual-conference-on-computer-graphics-and-interactive-techniques/



Citação do G. K. Chesterton em "What's Wrong with the World"

"Man has always lost his way. He has been a tramp ever since Eden; but he always knew, or thought he knew, what he was looking for. But in the bleak and blinding hail of skepticism to which he has been now so long subjected, he has begun for the first time to be chilled, not merely in his hopes, but in his desires. For the first time in history he begins really to doubt the object of his wanderings on the earth. He has always lost his way; but now he has lost his address."


terça-feira, 29 de agosto de 2023

Falsos antagonismos

Uma das recentes conquistas da legislação brasileira - e seguindo no bom rumo indicado pelo Marco Civil - foi a aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados em 2018. Com ela estabeleceram-se boas práticas e, especialmente, barreiras a abusos muito comuns, especialmente quando lidamos com o mundo digital.

Assim, privacidade é valorizada mas é justamente no “admirável mundo novo” digital onde passamos a ouvir, sistemáticamente, que nossos próprios atos, palavras e, até, pensamentos deveriam ser “totalmente transparentes”, para o “bem de todos”. Afinal, “quem nada tem a esconder não tem que se preocupar com o amplo acesso a suas informações”, afirmou uma importante personagem global. E é exatamente aí que mora o perigo…Há, sim, um íntimo pessoal e coisas como a intuição, que deveriam ser preservados de todos. Em Anna Karênina, Tolstoi faz Levin definir que: “deve haver sempre um muro isolando o ‘santo dos santos’ de minha alma de todos os indivíduos, e até de minha própria mulher <...> minha razão continua sem entender porque eu rezo, e mesmo assim continuarei rezando”…

Há um livrinho de um filósofo teuto-coreano, Byung-Chul Han, “Sociedade da Transparência”, que se propõe a debater o tema e vale uma vista d’olhos. A cultura e a civilização dá a cada indivíduo sua identidade própria, e isso é tão profundo que nem nós mesmos temos visão clara sobre o que somos. A civilização nos fez abandonar a busca da antiga proteção de rebanho, e fez dar voo e valor à individualidade. A complexidade humana cresceu proporcionalmente. Aquilo de id, ego e superego, lá de Freud e da psicanálise, dá uma boa ilustração de como, até para nossa sanidade, o uso de subterfúgios e de máscaras é importante e indefectível. Não é por menos que somos “pessoas”, palavra cujo étimo latino vem de “máscara de teatro”; somos personagens. Já Millôr, em uma de suas impagáveis tiradas, cutucava em contraponto: “Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem”.

Uma dúvida que pode surgir é se haveria um potencial conflito entre a necessidade de maior transparência, e a proteção à privacidade prevista na LGPD. Afinal desde 2011 há uma lei que dispõe sobre o acesso aberto e irrestrito a dados de órgãos públicos. Ficará clara a divisão de águas se atentarmos para os objetivos diferentes: temos o direito de saber o que se passa nos desvãos dos órgãos dos que nos governam – é a essência da Lei de Acesso a Dados - mas os dados dos indivíduos deveriam ser protegidos dos que buscam conhecê-los e controlá-los. O que nos difere é que temos profundezas individuais que devem ser protegidas. O ivrinho citado traz como epígrafe: “daquilo de que os outros não sabem sobre mim, disso vivo”. Danilo Doneda, especialista que perdemos há um ano e batalhador incansável por essa LGPD, nos dá a receita para dirimir dúvidas e separar o dever de transparência do direito à privacidadae: “A transparência deve ser diretamente proporcional ao poder. A privacidade deve ser inversamente proporcional ao poder.”

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em https://www.racket.news/p/tracking-orwellian-change-the-aristocratic
"Tracking Orwellian Change: The Aristocratic Takeover of 'Transparency'"

há um vídeo curto, mas revelador...
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em https://www.newyorker.com/books/joshua-rothman/virginia-woolfs-idea-of-privacy

Levin, at the end of “Anna Karenina,” calls it his “holy of holies,” and says that, no matter how close he grows to the people around him, there will always be “the same wall between my soul’s holy of holies and other people, even my wife.”

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https://doneda.net/frases-de-danilo-doneda/

“O Marco Civil da Internet tem uma vantagem muito relevante que é ter sido tratado sob a égide dos princípios e dos direitos mais do que estabelecer regras muito minuciosas sobre temas que hoje seriam obsoletos.”

“A transparência deve ser diretamente proporcional ao poder. A privacidade deve ser inversamente proporcional ao poder.”

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Livro de Byung-Chul Han: